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"Tristeza e solidão": o relato de quem se entregou ao álcool, morou na rua e quer recomeçar

No auge da pandemia, a vida de Marcelo Oliveira tomou um rumo inesperado. Além da morte da mãe, sua noiva desistiu do relacionamento e o abandonou

Thaiz Blunck

Redação Folha Vitória
Foto: Thiago Soares / Folha Vitória

O Espírito Santo foi o lugar que Marcelo Oliveira, de 41 anos, escolheu para morar há mais de duas décadas. Natural de Itabuna, Bahia, deixou sua cidade natal ainda jovem, em busca de trabalho e uma vida melhor. Com determinação, conquistou a estabilidade que desejava, mas não imaginava os desafios que enfrentaria.

Aqui no Estado, Marcelo trabalhou como porteiro, vigilante e garçom. Com uma rotina confortável e vida social ativa, conheceu uma capixaba e engatou um relacionamento.

"A minha vinda foi para trabalhar. Quando eu cheguei aqui, trabalhei em um supermercado, em uma construtora, entre outras empresas. Eu era batedor de laje lá e, quando me vi, estava todo arrumado aqui, trabalhando em uma empresa. Eu ganhava mais, dava para comprar minhas coisas e tinha uma vida bem legal. Conquistei duas motocicletas, uma bicicleta, uma quitinete toda mobiliada", relembra.

Tudo ia muito bem, até que a vida de Marcelo tomou um rumo inesperado entre 2019 e 2020, no auge da pandemia. Ainda vivendo o luto pela morte da mãe, ele foi surpreendido por outra perda: sua noiva desistiu do relacionamento pouco antes do casamento, deixando-o desamparado emocionalmente.

Foto: Thiago Soares/ Folha Vitória

Marcelo enfrentou dias de solidão e tristeza, que desencadearam uma depressão. Em busca de uma válvula de escape para aliviar sua dor, ele recorreu à bebida alcoólica e, quando se deu conta, já estava vivendo nas ruas. 

"O que me fez morar na rua foi uma perda familiar e um abandono. O que engatilhou a depressão foi a tristeza e a solidão. Foi o contar com alguém que achava que ia viver comigo e a pessoa me abandonar. Quando me vi, estava nas ruas. Eu já não tinha ânimo pra trabalhar. Para manter meu vício eu fazia reciclagem, às vezes descarregava caminhão, ia ajudar feirantes. Sempre fazia algum bico", contou ele.
Foto: Folha Vitória

Ao se dar conta de que estava no caminho errado, Marcelo parou para recalcular a rota e deu o primeiro passo rumo à reconstrução. A primeira parada foi no Centro de Referência para Pessoa em Situação de Rua (Centro Pop).

"Muitas vezes, eu estava na rua e bebia para esquecer. Era como se vestisse uma armadura para esquecer aquilo ali. A noite você não consegue dormir aquele sono tranquilo. Você dorme um sono leve, com medo de alguém te fazer uma covardia. Foi então que comecei a frequentar o Centro Pop e a participar daquele espaço", explicou Marcelo. 

O Centro Pop foi uma ponte para que ele chegasse até o Abrigo I, em Vitória, onde foi acolhido há quase um mês. Apesar de ter chegado por lá há pouco tempo, Marcelo já se sente à vontade, fez amigos e até voltou a estudar. 

Foto: Thaiz Blunck | Folha Vitória
"Eu tenho o sonho de continuar os estudos e fazer faculdade de Direito. Aqui tenho uma cama para dormir, tenho ventilador. Temos as demandas dos nossos educadores, as aulas. Agora estou fazendo tratamento com psicólogo e tomando as medicações. Pretendo me reintegrar ao mercado de trabalho e voltar a trabalhar em alguma empresa como porteiro, auxiliar de construção civil ou até de garçom."
Foto: Folha Vitória


Acolhimento e plano individual para superar a condição de rua

O Acolhimento Institucional para Adultos e Famílias em situação de rua do município de Vitória, conhecido também como Abrigo 1, foi criado em julho de 2021, praticamente no mesmo período em que Marcelo passou a viver nas ruas.

A instituição, no entanto, não atende por demanda espontânea. É necessário que a pessoa em situação de rua seja encaminhada para lá, considerando também a taxa de ocupação. Hoje, por exemplo, 100% das 50 vagas disponíveis estão preenchidas.

Foto: Thiago Soares / Folha Vitória
"Esse trabalho se dá através de encaminhamento da rede socioassistencial. Quando a pessoa chega, ela está em vulnerabilidade máxima, então é necessário trabalhar saúde, educação, cultura, cidadania, direitos humanos, onde todo esse universo de garantia de direitos passa a acontecer na vida dela. Esse acolhimento tem uma jornada pedagógica que acontece de forma coletiva e individualizada, dentro da demanda de cada usuário", disse o coordenador da instituição, Rodrigo Trindade. 

Segundo ele, há uma sala no abrigo para a Educação de Jovens e Adultos (EJA). Assim, os colegas que quiserem acompanhar o Marcelo nos estudos também têm a oportunidade de participar as atividades. 

Foto: Thaiz Blunck | Folha Vitória
"Muitos deles começam a despertar esse retorno para a escola, que é muito importante, e vão alcançando novas possibilidades. Já tivemos pessoas que passaram por aqui que foram aprovadas no IFES, por exemplo, e outras oportunidades mais. Eu as enxergo como pessoas que precisam de uma nova oportunidade", destacou o coordenador. 
Foto: Folha Vitória

Ao andar pelos corredores do Abrigo I, é impossível não se encantar com as diversas telas pintadas à mão por quem mora na instituição. O professor Milton Neves, que desenvolve trabalhos com pessoas em situação de vulnerabilidade há 10 anos, é quem os ajuda a buscar inspirações e expressar suas emoções através da arte.  

Foto: Thaiz Blunck | Folha Vitória
"Faço teatro há muito tempo, já dei aula também na Fafi e faço trabalho em vários abrigos há muitos anos. Aqui eles estão muito empolgados, se interessam por trabalhos manuais e gostam da arte, como pintura de telas e esculturas, por exemplo. Antes de fazer qualquer trabalho, eles pesquisam na prática e é muito interessante. A partir daí, passam as ideias deles, a gente aprimora e vai juntando. O trabalho é sempre coletivo", contou ele. 

As obras foram criadas especialmente para a Exposição Mãos das Ruas, que aconteceu em novembro do ano passado na Biblioteca Adelpho Polimonjardim, na Capital. Depois, os quadros ganharam espaço fixo nas paredes da instituição. 

Veja algumas telas pintadas por eles: 

Thiago Soares/Folha Vitória
Thiago Soares/Folha Vitória
Thiago Soares/Folha Vitória
Thiago Soares/Folha Vitória
Thiago Soares/Folha Vitória
Thiago Soares/Folha Vitória
Thiago Soares/Folha Vitória
Thiago Soares/Folha Vitória

O abrigo é humanizado e já recebeu mais de 1.100 pessoas até o momento. Ele funciona 24 horas, e além das atividades socioeducativas, os acolhidos também participam de atividades físicas com um professor, têm acesso a biblioteca, tratamentos de saúde e outros serviços fundamentais. 

Violência das ruas deixou marcas para a vida toda

Devido à vulnerabilidade e falta de proteção adequada, pessoas em situação de rua são constantemente vítimas de agressão física e verbal. Enquanto vivia nessa condição, Marcelo sentiu na pele o que é ser exposto à crueldade e carrega hoje a cicatriz da violência que sofreu. 

"Eu não me lembro com detalhes, mas sei que dei um dinheiro para comprar bebida alcoólica e começamos a beber, aí alguém me deu uma paulada. Até hoje não sei o motivo, mas levei seis pontos e quando acordei estava no hospital, com o médico fazendo um procedimento", contou ele.

ES teve 29 pessoas em situação de rua mortas em um ano

De janeiro de 2023 até março deste ano, 29 pessoas em situação de rua foram assassinadas no Espírito Santo, segundo dados da Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa Social (Sesp). 

Foto: Thiago Soares/ Folha Vitória

Dessas vítimas, 23 são homens e 6 são mulheres. Na maioria dos casos registrados, o crime aconteceu por disparos de arma de fogo, sendo 11 registros, seguido por armas brancas (faca, canivete, etc), com sete ocorrências. 

Casos de mortes após espancamento, linchamento ou violência física, somam seis. Diferente do Marcelo, que foi socorrido e sobreviveu para contar seu testemunho de vida, esses não tiveram a mesma sorte. 

Perfil das vítimas e municípios com maior número de casos

Questionada sobre o monitoramento nas áreas onde a população de rua se concentra, visando a prevenção de crimes, a Sesp informou que as forças de segurança planejam o patrulhamento em cima das estatísticas criminais, com aumento de recursos operacionais nas áreas em que há mais registro de ocorrências.

Destacou ainda que independentemente da presença, ou não, de moradores de rua em um determinado espaço público, há uma avaliação técnica para que o policiamento seja implantado de maneira eficaz.

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