Anatomia de uma queda: quando tudo desaba, o que é possível escrever?
Em “Anatomia de uma queda”, de Justine Triet, somos confrontados com uma atordoante história de amor. O filme nos inquieta por ser excessivamente real, sem pirotecnias ou excessos. O que impacta é justamente a presença de algo fundante em qualquer relação de amor: o ressentimento. Há a marca de uma história que atravessa os anos com suas dores, alegrias e traições. E há amor – com tudo que o amor abriga de horror. O filme descortina essa dimensão terrível que se infiltra no cotidiano de forma subreptícia, revelando que em toda parceria amorosa e sintomática há sempre algo também daquilo que Jacques Lacan chamou de “amódio”.
Parte do filme acontece em um tribunal, mas não se trata de grandes mistérios e reviravoltas: o grande enigma é mesmo a escrita de uma vida. Ali, como acontece na vida, não há separação estanque e fixa do que usualmente se nomeia realidade ou ficção. Há camadas diversas de questões: a maternidade, a paternidade, a queda como abalo imaginário da paixão frente ao insuportável do cotidiano, as ambiguidades que estão em jogo no amor, a raiva. Não há propriamente vítima e algoz e o que há de mais preciso no filme encontra-se encarnado na opacidade da deficiência visual do filho, com seus olhos turvos e sua sensibilidade.
Mais do que revelar um crime, ”Anatomia de uma queda” é um filme que não oferece concessões ao que se escreve de uma história. A queda é também a surpresa que revira qualquer certeza e nos lembra de que, quando estamos imantados por aquilo que nomeamos “amor”, guardamos aí também algo de nossos delírios e fantasias fundamentais.