Qual teu gesto poético? (ou os perigos da imagem única)
Essa imagem me diz muito. Uma fotografia que fiz quando estive em Brasília para uma reunião da Capes, em agosto de 2019. Saindo do hotel e caminhando em direção ao local da reunião, havia uma escada que dava acesso a um pátio de estacionamento de um shopping. Aquela simetria, no diálogo entre luz e sombra, foram como um convite ao clique do celular. Depois disso, guardei o aparelho no bolso e segui caminhando. Algum tempo depois, já em casa, olhei para o registro que fiz e lembrei de uma questão que me é muito cara nos meus estudos sobre a estética-política das imagens, e que pontuei de modo mais específico num texto que escrevi em 2020, intitulado “Nas bordas do discurso da dimensão humana (ou aquilo que chamamos de silêncio e sensação)”, publicado no livro “Conversas infinitas: mudanças climáticas, divulgação científica, educação e…”:
“Quero produzir falseamentos. Pôr a verdade no seu lugar de arranjo ficcional. Tento compreender como apontar seus efeitos, em específico, na escala do pensamento e da linguagem” (p. 164)
Por isso, a imagem feita não me soa como tradução de um instante, mas como partilha intencional e contextual de uma sensibilidade que se assume como tal. Desse modo, o sentido do “falseamento”, como gesto poético, não pode se confundir com uma questão que tenho me deparado recentemente: a reprodução daquilo que Jacques Rancière chama de “distribuição das posições” e como isso participa ou não da disputa pela manutenção dos “perigos da história única”, vide Chimamanda Adichie, ponderando justamente aquilo que Rancière explica sobre “quando se compreende que as evidências que assim estruturam as relações do dizer, do ver e do fazer pertencem à estrutura da dominação e da sujeição”.
A questão que deixo é: o quão comprometido estamos, em nossas práticas de pesquisa, de ensino e até mesmo artísticas, com uma maneira de fazer que interfira “na distribuição geral das maneiras de fazer” (Rancière), configurando, assim, um dizer-emancipatório que vislumbre o futuro como um efetivo horizonte de possíveis?