O Fantasma da Liberdade: Tensões entre Arte, Patrimônio e Capital
A Bienal de Coimbra, também conhecida como Anozero, é um evento especializado em arte contemporânea que une a tradição e a vanguarda na cidade homônima, na região centro de Portugal.
Este projeto, que ganhou força e escala nas últimas edições da bienal, mas que existe desde 2015, já recebeu grandes nomes do cenário mundial, como Louise Bourgeois, Dominique Gonzalez-Foster, Danh Vo, José Pedro Croft, William Kentridge, e do Brasil, como Rubens Mano, Laura Vinci, Lygia Pape e, nesse ano, Cildo Meirelles, Aline Motta e Ricardo Aleixo, Castiel Vitorino Brasileiro, e Paulo Nazareth sem esquecer a curadoria geral de 2019, a cargo do também brasileiro Agnaldo Farias.
É um evento que tenho o prazer em experimentar e participar de diversas formas (já ali estive como voluntária, artista, educadora e visitante) não só pela incrível inserção que possui na cidade, costurando percursos e ideias entre seus terrenos acidentados e margens, pela curadoria sempre potente e precisa, ou ainda pelo excelente trabalho educativo que se tem criado em suas últimas edições.
É mais que isso. Um evento de arte contemporânea que verdadeiramente abraça a cidade de Coimbra e seus pontos fulcrais: patrimônio e paisagem, e onde se pode viver o tempo, o antigo, o moderno e o contemporâneo.
É construída com força total em uma parceria entre a Universidade de Coimbra, a Câmara de Coimbra e o Círculo das Artes Plásticas, este último sendo a entidade que a organiza, com uma equipe pequena que a mobiliza e cocria com diversos agentes no terreno, inclusive convidando para o desenho de uma programação paralela, que abrange os mais diversos assuntos e manifestações artistícas.
Sempre falo nessa coluna da importância de se viver experiências estéticas, e essa é uma delas. Andar pela cidade e tropeçar na Bienal, sem nenhum tipo de “efeito Disneylândia”. Coisa levada à sério, por gente que acredita que a arte possa ser também um lugar de debate, de imaginação e de mudança política.
A presente edição, intitulada o Fantasma da Liberdade, com curadoria de Ángel Calvo Ulloa e Marta Mestre, está imersa no contexto dos 50 anos do fim da ditadura em Portugal e das turbulências políticas mundiais, e surge como um testemunho eloquente do poder transformador da arte em tempos de inquietudes políticas.
Construiu-se ao redor desse momento histórico e particular um projeto curatorial que não só discute a liberdade pelas vias do indivíduo e do coletivo, da prática artística e das várias organizações sociais e humanas possíveis, mas pela ideia fantasmagórica e flamejante de liberdade, diariamente construída e nunca inteiramente conquistada.
E foi com tristeza que se recebeu a notícia, que a sombra da comercialização paira sobre esse projeto, uma vez que é iminente o deslocamento de seu edifício-sede, o Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, para as mãos da iniciativa privada.
A sua conversão em um hotel de 5 estrelas representa um golpe à integridade artística e histórica da cidade: a monetização do patrimônio cultural para este fim ameaça usurpar um espaço consagrado da arte, relegando-o à esfera do consumo superficial.
Diante do iminente perigo, me questiono: faltou imaginação, lisura ou desejo político? Não seria possível pensar em um concurso para receber propostas que mantivessem o edifício central da Bienal ileso, enquanto o hotel emergisse como uma construção nova, em um anexo em áreas ou terrenos adjacentes? E que, beneficiando-se da espetacular vizinhança ao patrimônio histórico, pudesse também apoiar financeiramente a sua manutenção e restauração?
Cabe questionar se a colaboração entre o público e o privado não pode estar mais comprometida com a preservação e democratização da cultura, ou se serve apenas aos interesses do mercado. O desafio reside em conciliar a necessidade de sustentabilidade financeira de espaços similares com o compromisso ético de proteger os projetos e programações culturais consolidados como patrimônio humano coletivo.
Sei bem que não estou sozinha quando digo isto e o abaixo-assinado organizado por mais de 1700 artistas em todo mundo ecoa como um clamor em defesa da integridade da Bienal.
É imperativo que as vozes da comunidade artística sejam ouvidas e que medidas concretas sejam tomadas para garantir que a Bienal e o Mosteiro permaneçam como espaços de referência para experimentar o passado e o futuro, dando voz e lugar aos debates e modos de ver de artistas ao redor do mundo.
Para quem tem o privilégio de vivenciar a Bienal de Coimbra em sua plenitude, um convite: aproveitem suas atividades em cartaz até junho. Para quem está um pouco mais longe, este é um lembrete contundente da importância de apoiar e preservar os espaços e projetos culturais locais.
Com eles pensamos o presente e desafiamos o futuro, evitando que caiamos na pasteurização sem fim das cidades onde só se come brunch, nas lojas todas iguais dos shoppings e nos complexos hoteleiros cada vez mais exclusivos.