Análise: de “Dias Perfeitos” à “Bebê Rena”

Foto de Juliano Gauche
Juliano Gauche

A bola da vez é a série Bebê Rena, que estreou recentemente na Netflix. Seu criador, Richard Gadd, que também interpreta a si mesmo na trama, vestiu como uma luva o velho ditado popular, “quando Pedro me fala de Paulo, sei mais de Pedro do que de Paulo”.

A princípio, a história gira em torno de Martha, que ele apresenta como sua ‘stalker’, termo usado para definir uma pessoa que persegue intensamente outra pessoa.

Mas ao nos expor Martha e toda sua vida problemática, ele expõe a si mesmo de uma forma tão brutal, que vem chocando desde terapeutas a lideranças políticas, agitando ainda mais os debates sobre a condição humana atual e sua necessidade de cura.

Bebê Rena, um apelido carinhoso que a personagem Martha dá ao personagem Donny (Richard Gadd), vai se despindo, através de como ele narra os absurdos cometidos por sua implacável perseguidora, até que a pergunta inevitável emerge, “mas como você permitiu que tudo isso chegasse a esse ponto?”, e é ao tentar responder essa questão, que ele acaba por enxergar e entender a si mesmo, nos dando de presente esse poderoso auto retrato.

Cena da mini série Bebê Rena

Cena da mini série Bebê Rena | Foto: Reprodução/Netflix

Donny Dunn é, em Bebê Rena, um comediante em começo de carreira, que, em busca de reconhecimento, submete-se a todo tipo de abusos por parte de um outro roteirista que promete lhe ajudar em seu crescimento. Assista ao trailer aqui.

Esses abusos e a forma como o comediante lidou com eles, é que dá à série essa sensação realista que não nos deixa desviar a atenção por um segundo, sequer.

A forma como cada um lida com o que de pior a vida lhe trouxe, também parece ser o tema do filme Dias Perfeitos (2023), dirigido por Wim Wenders.

Nele, o limpador de banheiros, Hirayama (Koji Yakusho), parece ter encontrado a transcendência, a paz, a iluminação, ao fazer cada tarefa de seu dia transpirando uma paixão que brilha em seus olhos, espalhando leveza e harmonia por onde ele passa.

Mas à medida que o filme avança, a vida de Hirayama vai nos mostrando também a sua face menos ensolarada. A forma como sua sobrinha entra em cena, fugindo da riqueza repressiva de sua mãe, vai espalhando no ar um pouco da atmosfera da qual Hirayama parece ter fugido.

É a forma como ele encontrou refúgio em si mesmo, apoiando-se na beleza das pequenas coisas e na grandeza dos gestos mais simples, que faz de Dias Perfeitos um filme tão necessário.

Fotografar a beleza das árvores, plantar e ver crescer, comtemplar pessoas estranhas, entregar-se à uma canção, vadiar de bicicleta pela cidade… fazer de cada minuto um acontecimento, parece ser a receita desse carismático limpador de banheiros para escapar das próprias dores. Veja aqui o trailer.

Essas duas narrativas, aparentando caminhos opostos, nos leva a um mesmo lugar, a solidão. Enquanto Hirayama a abraça e aprende com ela a liberdade, Bebê Rena afoga-se nela, gritando desesperado por alguém que lhe estenda a mão, atraindo para si, pessoas que também estão se afogando em si mesmas.

Talvez por isso poder-se-ia afirmar que o estardalhaço que série vem fazendo, esteja mesmo ligado ao efeito espelhamento, ou seja, a identificação com ela é muito forte e natural, enquanto que com Dias Perfeitos, seja mais distante e sutil.

Medo de ser julgado, medo de ser ignorado, medo de ser esquecido… são tantos os medos de Donny em Bebê Rena, que não tem como não nos vermos em algum deles. E o título da série, Bebê Rena, é perfeito, pois a forma como o medo nos infantiliza, é realmente ridículo. E de onde vem tanto medo?

“Daqui a quinhentos anos, isso não fará a menor diferença”, ironizou o personagem Lino em um episódio do antigo seriado Snoopy, ao ser questionado por estar dançando feito um louco com um cachorro. Não se dar tanta importância pode ser mesmo libertador.

Conseguir encontrar profundidade, grandeza e substância, dentro do que deveria ser um caos desenfreado, parece ser mesmo das tarefas mais difíceis. E o exemplo do limpador de banheiros retratado por Wim Wenders, inspirado na história real de um trabalhador de Tóquio, tem sim muito a ensinar.

Mas nos próximos dias, será sobre o Bebê Rena e sua ‘Stalker’ que ouviremos mais, pode-se apostar. Por mais estranho que pareça, a metade vazia do copo ainda é a que mais vende.

Foto de Juliano Gauche

Juliano Gauche

J.Gauche é autor e compositor. Publicou em 2002 seu primeiro livro de poemas. Entre 2003 e 2013, colaborou como letrista da banda índie Solana. Em 2013 começou seu trabalho solo, lançando até o momento quatro álbuns autorais. Desde 2002, segue publicando poemas, crônicas, contos e novelas em seus blogs, além de participar de coletâneas e colaborar no trabalho de outros autores e compositores.