A beleza da ruína: instalação e fotografia de Júlio Tigre

Foto de Fernando Augusto
Fernando Augusto

Júlio Tigre é um desenhista de mão cheia. Lembro-me das vezes que saímos juntos para desenhar, no Centro de Vitória; alegrava-me vê-lo chegar desenhando, sem gastar tempo procurando uma cena ou um ângulo interessante. Tudo era interessante! Por isso ele já chegava riscando.

Ele é um desses artistas que a gente diz que desenha com facilidade. Com caneta, lápis, pincel ou qualquer coisa que risca, mancha ou imprime, figuras incríveis saem de suas mãos para habitar o mundo.

Mas como se isso não bastasse ele esculpe (tem uma grande escultura  no Parque de Esculturas Casa do Governador), cria abelha, fotografa, faz intervenções na areia da praia onde mora, faz histórias em quadrinhos, poeta, cozinha, faz instalações, cinema, trabalhando como ator e cria música. Sua última aventura foi a exposição “Inquilino – A Casa é o Museu” no MAES – Museu de Arte do Espírito Santo, centro de Vitória.

Exposição ‘Inquilino’ de Júlio Tigre: a beleza da ruína | Foto: Divulgação

Exposição ‘Inquilino’ de Júlio Tigre: a beleza da ruína | Foto: Divulgação

A exposição se deu em duas vias, uma no museu, outra, a ocupação de uma casa velha na ladeira São Bento, no mesmo período da mostra, onde o artista intervinha, criava objetos, situações escultóricas e postava fotos do trabalho via internet.

Este pequeno texto nasce da visita a esta ocupação, ocorrida no último dia da exposição no MAES.

Fez parte da exposição o artista habitar esta casa antiga na Ladeira São Bento, centro de Vitória e nela interferir, criar esculturas, fotografar e postar imagens desta intervenção-instalação solitária.

Não fazia parte, porém, por motivo de segurança, abrir a porta desta casa para visitação pública. Mas eis que no último dia  da exposição o artista resolveu dar acesso a esse lugar.

E lá fui eu. Já havia visto algumas fotos via Instagram e ficara impressionado com a beleza plástica das imagens. As casas antigas tem esse poder de sedução do tempo passado. Não é atoa que visitamos ruinas, sejam em Roma, na Grécia, no Egito.

As ruinas guardam um esplendor que  se foi. Um olhar sobre uma fotografia de Vitória antiga nos encanta, nos mostra um fração disso. E o que havia para ser visto nesta casa na ladeira são Bento?

A arquitetura sim, mas sobretudo o tempo. O tempo que não passa e no entanto deixa marcas.

A visita foi proposta à noite. Entrada individual, cada pessoa levaria sua lanterna, para se orientar com sua própria luz, para focar o que quisesse ver no escuro, para acrescentar alguma forma além da sua própria sombra, por fim, sendo prático, para evitar acidentes.

Afinal, portas, janelas, assoalho podiam ruir, mas com cuidado podia-se visitar todo o espaço tateando com os olhos e as mãos.

Foi assim que participei da visita à instalação, sem lanterna. Fico imaginando a silhueta de alguém entre aquelas sombras, os ruídos dos passos, da respiração. a troca de impressões através de um olhar ou de um aceno. Mas a experiência foi individual e assim a vivi.

Durante cerca de vinte minutos fui o inquilino daquele ambiente. Gostaria de ter me sentado ali mesmo para escrever ou desenhar este texto.

Mas pensei que o tempo de visita era curto e me dediquei à visita. Eu fui lá com o tempo de visita, esse que a gente conhece e sabe que tem alguém esperando lá fora, portanto não se demora muito. A forte impressão causada pelas fotos fui suplantada em muito pelo vi lá dentro.

O colorido das paredes, a iluminação cenográfica, a materialidade do tempo em objetos carcomidos pelo uso, pelo vento, e sobretudo pelo tempo. Anos de abandono. E a química da vida ali, transformando e fragilizando tudo o que é solido.

Foi admirável! Esculturas feitas de tempo e linhas, cera de abelha e tijolos, luz, sonoridade e espacialidade. Um tonel velho e um pedaço de violão produziam som no andar de cima, como um relógio: tic, tac, tic, tac cantando o tempo.

Nada é mais pesado para o ser humano do que o tempo. Ele nos dobra e nos leva. Machado de Assis já dizia que matamos o tempo, mas ele nos enterra. Ali, na casa-inquilino-museu vivi, por alguns minutos, a experiência assustadora da beleza da ruina e do tempo. Perde-se quando se vive, perde-se mais quando não se vive ou se intenta guardar tudo da vida.

A exposição “Inquilino” aconteceu no MAES de 22 de março a 26 de junho, a visita a casa da Ladeira São Bento aconteceu no dia 22 de maio, 2024.

Foto de Fernando Augusto

Fernando Augusto

Artista plástico, pintor, desenhista e fotógrafo. Professor do Departamento de Artes da UFES. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP - Sorbonne).