Você se ajoelha diante do seu trabalho?

Foto de Fernando Augusto
Fernando Augusto
Recentemente recebi esta fotografia  enviada por Margareth Sacht com a legenda “o artista em oração”. A observação engraçada  e acurada me levou a um texto de Elias Canetti (escritor búlgaro e prêmio Nobel em 1981), onde ele narra seu encontro com escultor austríaco Fritz Wotruba.

O fato se deu por intermédio de Anna  Mahler, que gostava de conviver  com  artistas e personalidades da cultura austríaca e gostava também de promover encontros de artistas. Canetti chegou ao atelier e Anna conduziu-o a um jovem, que ajoelhado diante da escultura, trabalhava em sua porção inferior.

“Quando entrei no atelier e Anna disse meu nome, Wotruba estava de costas para mim e não se levantou. Não tirou os dedos da argila, mas continuou a modelá-la. Ainda de joelhos, voltou a cabeça em minha direção e disse numa voz profunda, encorpada: ‘O senhor também  se ajoelha diante do seu trabalho?’ Canetti entendeu que era um gracejo que servia de desculpa por ele não ter prontamente se levantado para o aperto de mãos. Nele, porém, mesmo um gracejo tinha peso e significado. Com o “também” dava-me as boas vindas, equiparando seu trabalho ao meu; o “ajoelha” expressava uma expectativa, ou seja, a de que eu levasse meu trabalho tão a sério quanto ele levava o dele.

Foi um bom começo.” Pode ser que o estar ajoelhado, trabalhando fosse apenas uma posição  mais cômoda para aquele fazer, mas propô-la como questão, o escultor trazia à cena um caráter espiritual, o da devoção. Devoção que segundo Kant seria “a disposição espiritual que nos torna capazes de sentimentos de dedicação para com Deus”, a qual se pratica mediante certas formas, onde ajoelhar é um dos seus gestos mais elevados.

Mas atribuir a essa disposição o mesmo valor de sentimentos de dedicação à Deus é, segundo Kant, a ilusão  religiosa  que resulta ao falso culto a Deus “visto que o único culto verdadeiro é a boa conduta moral”.
É aí que encontramos Wotruba e nos filiamos, como Cannetti, à sua proposição. Somos condenados ao trabalho, mas nós mesmos a ele nos devotamos, e nele encontramos alguma redenção (poderíamos dizer também  alegria, satisfação, sentido).
Já vi que este texto vai ficar longo, proponho continuá-lo semana que vem, com o mesmo título. Se você chegou até aqui e é um desses teimosos que gosta de ir até o fim, nos encontramos na próxima publicação.
Foto de Fernando Augusto

Fernando Augusto

Artista plástico, pintor, desenhista e fotógrafo. Professor do Departamento de Artes da UFES. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP - Sorbonne).