O abismo de cada um: análise sobre o filme “No coração do mundo”

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Bianca Dias

O filme “No coração do mundo”, dos diretores mineiros Maurílio Martins e Gabriel Martins, está em cartaz na mostra que comemora os 15 anos da produtora “Filmes de plástico”, formada pelos amigos de Contagem: André Novais, Maurílio Martins, Gabriel Martins e Thiago Macedo.

O filme revela que chegar ao coração do mundo é abissal. Alcançar o abismo do coração, o ponto exato de tremor diante da existência e da diferença. Devo dizer que acompanho com entusiasmo os exercícios estilísticos e éticos dos diretores do filme, que crescem a cada trabalho.

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Desde “Contagem”, sonho com o Jardim Laguna, um lugar estranhamente familiar, paradoxal e excessivo, onde as ruas têm nome de flores e há a fantasmagoria de uma cidade sem margem para o imprevisto e para o sonho.

Os moradores precisam, então, encontrar, no tempo inoperante, o espaço para o desvario, uma rota de fuga de um lugar incontornável para um espaço do desejo.

Um desejo encarnado na própria vida dos diretores, que filmam um mundo que lhes concerne, ensinando sobre uma dimensão da experiência, que é muita rara, sem recursos alegóricos e que vive na crueza da imanência das coisas.

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O incalculável de uma vida aparece na linda homenagem ao cinema na performance de Grace Passô, que conta algo que marca sua vida, uma memória que lhe concede o direito da ficção.

Os atores não foram treinados e alojados num espaço superficial, eles são dali mesmo, encarnam tudo que se pode figurar e silenciar dentro do contexto periférico: são absolutamente brilhantes em movimentos de explosão e esvaziamento intenso, transmitindo uma densidade muito singular. Entre idas e vindas de ônibus percorremos uma cidade, uma possibilidade de viagem, de atopia.

Do massacrante cotidiano, fagulhas de vida vicejam entre a ausência de sentido: amparar-se num fora dali, estando totalmente ali, é uma contradição que sustenta o filme de maneira poderosa e tênue. No tempo próprio da periferia que se desenha no filme há uma tentativa de escrita que possa capturar a radicalidade daquelas vidas, um espaço outro para a dimensão da ruína.

A identidade dos diretores e atores está entranhada no filme e é inscrição de um acontecimento, de uma obra que compartilha algo que se sabe um tanto indivisível. Por isso, chegar ao abismo do coração é tocar o real: gesto de resistência que resgata questões do singular e do comum.

Entre o que se perde e o que se pode reter há o som murmurante da existência, das pequenas e grandiosas vidas que, por algum deslize, esbarram na dura realidade, no inescapável horror da invisibilidade.

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Bianca Dias

Psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF. Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP. Professora convidada de várias pós- graduações com ênfase em artes plásticas, cinema, literatura e colaboradora de revistas, livros de artista e publicações de arte.