A extraordinária vida comum de J.D. Salinger
O livro “O Apanhador no Campo de Centeio”, lançado em 1951, apanhou os ‘babyboomers’ de tal maneira, que forçou o seu autor, o norte-americano Jerome David Salinger ou J.D. Salinger, a optar pela reclusão como estilo de vida, tamanho o assédio que passou a sofrer depois do lançamento deste, e assim viveu isolado até os seus 91 anos de idade, quando morreu, em 2010.
Num artigo chamado ‘Salinger e a invenção da adolescência’, o autor Luciano Trigo diz que “Num sentido profundo, Salinger inventou a ideia de adolescência que vigorou da segunda metade do século 20.”. O livro caiu como uma luva sobre desconforto da enorme geração de jovens que nasceu após a segunda guerra, conhecida como ‘babyboomers’, que enxergou no protagonista, Holden Caulfield, o protótipo ideal do que depois passaria a ser chamado de adolescente.
No filme Rebel in the Rye, de 2017, dirigido por Danny Strong, podemos acompanhar o nascimento desse clássico da literatura, assim como podemos também entender as razões do seu autor pela escolha da solitude. O filme se concentra nos esforços de Salinger para escrever seu primeiro livro, e nas lições que recebia de seu professor, Whit Burnett, que sempre insistia em repetir que o importante era escrever, todos os dias, não publicar. Mas Salinger, aos 32 anos de idade, como qualquer jovem, tinha pressa em existir, e publicou.
Com a publicação de O Apanhador no Campo de Centeio, não só a venda deste começou a crescer de forma descontrolada, como também o surgimento de garotos que juravam ser Holden Caulfield, tamanha a identificação com o personagem central do livro. Todos desesperados para encontrarem o autor que tanto os compreendia, enquanto esse, soldado traumatizado pela guerra, só queria ficar sossegado em seu canto.
Para fugir das perseguições, Salinger construiu um abrigo no meio no mato, e isolou-se por lá, seguindo de vez o conselho de seu antigo professor, de escrever todos os dias sem se preocupar em publicar. Tamanha reclusão só serviu para aumentar o mito sobre o livro e seu autor. Como exemplo do impacto que ele teve sobre os jovens, basta lembrar que em 1980, quando John Lennon foi assassinado, o responsável pelo crime apenas entregou uma cópia do ‘Apanhador’ como sua declaração.
Em contraposição a tantas obscuridades, o filme Meu Ano em Nova York, 2020, dirigido por Philippe Falardeau, mostra um Salinger idoso e extremante gentil, como se tivesse mesmo encontrado a tal felicidade. Na trama, o escritor nunca poupa atenção, cuidado e generosidade com quem encontra pelo caminho.
Secretárias, revisores, artistas gráficos, todos que pareciam fazer parte do seu ínfimo círculo pessoal, sempre saiam encantados, aéreos, depois de uma conversa com o escritor. Fosse por telefone, fosse num raro encontro físico, o que filme nos mostra, é que ele sabia estar presente quando estava presente. E conseguiu manter uma leveza, que talvez anos de exposição na televisão, respondendo a teorias sobre a morte do ‘Beatle Jonh’, a teria destruído.
No fim, o que parece, é que Salinger apenas se isolou do mercado, do público, dos críticos, da crítica, e conseguiu manter uma vida, reservada sim, mas cheia de amigos de verdade, tão discretos como ele.
Aqui no Brasil, João Gilberto também sustentou uma atmosfera parecida, de artista recluso, mas amigo fiel e prestativo de muitos. Assim também como a escritora Hilda Hilste, que se fechou com o seus num lindo sítio no interior, levando uma vida de matriarca livre, até o dia em que lá morreu e lá foi sepultada.
Os filmes, ‘Onde Está Você, João Gilberto?’, 2018, de Georges Gachot, e ‘Hilda Hilst Pede Contato’, 2018, de Gabriela Greeb, embora foquem justamente no estilo de vida recluso dos biografados, também nos dão pistas dessa vida rica em amizades profundas.
O mito do ermitão sempre imerso em seu sagrado interior, nesses casos, cai um pouco por terra. O que surge é a paixão pelo processo, a vontade de continuar produzindo, de produzir cada vez mais e melhor. E tudo que é realmente importante para viver assim, passa a ser o sagrado. Até mesmo os amigos necessários. O que fica de fora é apenas o mercado e todas suas ‘urgências’. Que também aprendeu a vender tais ausências.
Estar em evidência custa caro. Um milhão, no mínimo, para lançar um artista no mercado, é o que sentencia a empresária Kamilla Fialho (ex Anita), em entrevista ao canal Corredor 5 no Youtube. E a fila de artistas em busca de espaço nesse mercado está atravessando os programas de auditório há anos. O que não falta é gente disposta a aceitar esse investimento e a arcar com as consequências depois.
Quando então surge um no meio da multidão que, apesar do talento, insiste em ir na direção oposta, um que prefere abrir mão de milhões a perder suas conexões mais importantes, o mercado logo o vende como algo especial, que em algum lugar acaba caindo nas proximidades da loucura. Como se negar as exigências do mercado, fosse negar as exigências da vida.
Mas a arte, e suas camadas cheias de memórias e inconsciências, está sempre nos mostrando o óbvio. A secretária do Salinger enternecida com seus conselhos generosos, comovida com sua dedicação a escrever e só escrever, no filme de Falardeau. Os amigos e familiares do João Gilberto claramente apoiando e protegendo o espaço sagrado dele, enquanto o diretor do filme pena inutilmente por um contato com o gênio inalcansável. O séquito de escritores que conviveram com Hilda Hilst expressando um luto quase filial.
Está nas tais entrelinhas a riqueza das amizades construídas por esses exemplos de artistas ditos reclusos. Longos telefonas, encontros inesquecíveis, e muitas horas dedicadas ao trabalho. Quem em sã consciência trocaria o poder que nos concede a fama, por uma vida dedicada ao trabalho e aos amigos? Quem compraria um livro sobre alguém que dedicou sua vida ao trabalho e aos amigos?
A não ser que essa vida seja a de um gênio, de um homem que por questões profundas perdeu sua capacidade de conviver com as pessoas normais, e outras coisas que se costuma dizer nesses casos para minimizar o fato de que o artista escolheu levar uma vida comum. Como se uma vida comum fosse uma ofensa a toda glória que só o mercado pode oferecer. E como se uma vida comum não fosse por si só tanta coisa ao mesmo tempo.