A inteligência artificial pode conceber arte? Parte 3
Em dois artigos anteriores nesta mesma coluna, afirmei que as inteligências artificiais não são capazes de conceber arte e nem de ser autoras ou coautoras do que quer que seja. O argumento é simples: máquinas não tem arbítrio, portanto só podem produzir algo sob o comando de quem o tem. Se esse algo é de ordem autoral, a autoria é de quem as comanda e não delas próprias. Elas tampouco podem se implicar existencialmente em suas produções e não há produção espiritual sem comprometimento existencial. Sendo a arte um tipo de resposta poética ao enigma insolúvel da vida, ela não poderia ser dada por uma entidade que não fosse viva, que não tivesse a sua existência, efetivamente, atravessada pelas adversidades da vida.
Neste terceiro artigo, insistirei um pouco mais na questão, com o intuito de introduzir a resposta à duas objeções sempre possíveis: a primeira objeção reafirma a posição de coautoria das inteligências artificiais, devido à sua capacidade de intervir na atividade criativa, com aportes que o artista sozinho jamais poderia obter. A segunda objeção joga na nossa cara a profusão de imagens produzidas por essas inteligências, sendo muitas delas bonitas, inéditas, tecnicamente refinadas e portadoras de mensagens elaboradas. Ora, por que negar a elas o estatuto de obras de arte? São estes os pontos que pretendo tratar neste e no próximo artigo.
Tomemos a primeira objeção: de fato, os poderes das inteligências artificiais são prodigiosos: por meio de varreduras na rede e do uso de diferentes efeitos visuais, elas são capazes de produzir imagens inéditas a partir de referências cuja origem não pode ser identificada e frequentemente desconhecidas e inacessíveis ao artista. No entanto, esse trabalho de busca e de combinação de dados só é possível graças à uma competência específica, chamada engenharia de prompt, que cuida de conceber comandos cuidadosamente elaborados, que determinam as finalidades e os critérios de operação da máquina. Ora, esses comandos são produzidos pela vontade e pelo arbítrio do sujeito que a manipula, o que o coloca na condição de autor e a máquina na condição de instrumento.
O que está em jogo aqui é a oposição entre arbítrio e programação. O arbítrio é capaz de autoria porque pode agir sobre si mesmo, enquanto a programação apenas cumpre as determinações que lhe foram delegadas por outra instância. Um bom exemplo deste embate é dado pela experiência de um grande enxadrista que venceu uma partida contra uma inteligência artificial, graças a uma estratégia inusitada, que consistiu em jogar mal! Deliberadamente, ele fez jogadas desatinadas e temerárias, que confundiram a máquina e assim conseguiu vencê-la. Essencialmente, ele alterou sucessivamente o padrão de sua própria operação durante a partida, simulou um procedimento catastrofista, suscetível de ser apreendido por uma mente perspicaz, mas não por uma entidade programada. No entanto, os aperfeiçoamentos da inteligência artificial impedem os jogadores recentes de repetir tal performance. Mas é preciso que se diga que a mudança de comportamento da máquina não se deve à auto deliberação e sim à reprogramação. Quanto aos enxadristas, seria pedir demais, mesmo aos maiores do mundo, que concebam, a cada partida, novos modos estratégicos de jogar mal.
Uma verdadeira relação de coautoria ocorre em outras condições: exige a interação negociada de diferentes arbítrios, o que envolve, por vezes, conflitos ferozes entre ímpetos desejantes e autoconscientes. O improviso no jazz é um bom exemplo de criação coletiva a partir de intervenções individuais, que buscam se harmonizar sem perder as suas singularidades. Mesmo os grupos de criação coletiva que trabalham de modo dissonante e que afrontam as noções de unidade e de harmonia o fazem a partir da escolha por um regime disruptivo de trabalho e não por simples dispersão. Há também os casos em que o momento intrínseco da criação não foi conscientemente reconhecido como tal, mas que os envolvidos, posteriormente, reconheceram a coisa criada e se assumiram como criadores.
Tais exemplos apontam algumas das necessidades da experiência de autoria: ímpeto desejante, vontade deliberativa e autoconsciência. A coautoria só poderia resultar do embate entre estas forças. No mais, o autor, para ser autor, precisa afirmar-se como tal, por deliberação própria; precisa fundar-se a si mesmo como autor e só um sujeito humano é capaz disso. Em síntese, ainda que a capacidade de intervenção da máquina seja realmente grande, toda determinação de finalidades, todo o investimento desejante, a autoconsciência e risco nas tomadas de posição advém de quem a manipula.
Temos ainda o segundo contra-argumento: a miríade de imagens atraentes produzidas pelas inteligências artificiais e o seu possível estatuto de arte. Deixemos o tema para o próximo artigo.