Censura à arte visual: a liberdade de expressão está ameaçada no Brasil?
Nos últimos anos, a Arte Visual vem sofrendo um processo de controle por parte de certos segmentos da sociedade. Tais segmentos costumam recorrer a dogmas, crenças religiosas ou conservadoras no intuito de tentar coibir manifestações artísticas das quais discordam ou simplesmente não gostam.
Agem às avessas da liberdade de expressão, inclusive a artística, entre outras, cuja garantia é constitucional. Basta uma breve leitura do excerto da Constituição Federal de 1988 do Título II, dos Direitos e Garantias Fundamentais, em seu Capítulo I, que trata dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, em especial de seu Artigo 5º. E incisos IV e IX:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;”
O que se observa é o atropelamento destes dispositivos constitucionais revelando, por um lado, a tentativa de controle sobre quaisquer manifestações que desagradem alguém ou alguns e, por outro, a de impor a censura sobre o que não coaduna com suas crenças no intuído de influenciar a sociedade em benefício de suas causas.
Apenas para clarear o viés deste texto, vale a pena recordar uma das atitudes mais radicais já promovidas contra Obras de Arte. Um dos exemplos marcantes deste tipo de comportamento foi realizado, em julho de 1937, com a exposição de 650 obras de artistas modernistas confiscadas de 32 museus alemães, pelo partido nazista alemão, mostradas sob o título de “Arte Degenerada” em Munique.
Além de confiscadas, a maioria delas foi destruída, mas antes disso, foram mostradas num circuito expositivo por museus e escolas como exemplo da decadência cultural que, segundo o partido, contrariava o ideal de beleza clássico e naturalista da chamada “Arte Alemã”. Um ato explícito de barbárie cultural.
Este foi o maior exemplo de intransigência sociocultural. O mais preocupante é que esta tendência vem crescendo nos últimos anos, por conta da ampliação de segmentos sociais, que pretendem reprimir e censurar o que não atende aos seus gostos, valores ou crenças.
Para reforçar esta percepção e dar a dimensão destas atitudes recorro a exemplos recentes, obtidos nas mídias sociais em rede, amplamente difundidos nos meios de comunicação social: em 2006, o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) do Rio de Janeiro proibiu a obra Desenhando em Terços por pressão de segmentos religiosos.
Em 2017, a mostra “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, promovida por uma instituição cultural de um conhecido banco comercial em Porto Alegre, foi fechada por conta de protestos movidos por grupos conservadores nas mídias sociais.
No entanto, o Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul recomendou à instituição que reabrisse imediatamente a exposição, o que não foi atendido. A mesma mostra, estava programada para ser exposta posteriormente, no Rio de Janeiro, mas foi cancelada. A obra que abre este texto fazia parte desta mostra.
Ainda em 2017, em Campo Grande (MS), a obra de uma artista de Minas Gerais foi apreendida e retirada da exposição do Museu de Arte Contemporânea sob a alegação de apologia à pedofilia sendo que, ao contrário, a obra denunciava este crime.
No mesmo ano, uma performance realizada por um artista nu, num dos Museus da cidade de São Paulo, registrada em vídeo, também foi foco de crítica pelo fato de uma criança, de aproximadamente 4 anos, acompanhada da mãe, tocar no pé do performer. Obviamente, a mãe, não se constrangeu tampouco impediu a criança de agir.
Em maio de 2023, uma professora de história da arte de um colégio particular de Aparecida de Goiânia, Goiás, após ser criticada por um deputado goiano, foi demitida por usar uma camiseta com a frase “Seja Marginal, Seja Herói”, do artista plástico Hélio Oiticica.
Em março de 2024, uma performance de estudantes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, preparada pelos estudantes de arte para recepção dos calouros, gerou polêmica e debate. A razão foi o fato da performance ter sido realizada por estudantes nus, sentados em torno de mesas diante da galeria de arte da instituição. Embora a atividade artística fosse interna ao ambiente acadêmico, foi divulgada por conta de um vídeo tomado de modo anônimo e divulgado indevidamente nas redes sociais.
A mais recente atitude deste tipo ocorreu com o fechamento no dia 19 de agosto de 2024, de uma mostra que estava em curso na Galeria de Arte Sesiminas, em Belo Horizonte, encerrada precocemente. Este tipo de comportamento tem se mostrado recorrente nos últimos anos e é, no mínimo, preocupante.
Entre outros, um fato internacional que chamou a atenção recentemente foi a polêmica promovida por grupos religiosos e homofóbicos utilizando um fragmento de uma ação performática realizada na abertura dos jogos olímpicos de Paris em 2024.
Uma tomada visual fortuita do cenário foi associada a um famoso quadro que representa uma cena religiosa e, por conta disto, passou a ser vista como uma afronta àquele segmento religioso. O mais preocupante é que, independentemente das explicações, justificativas e até mesmo pedido de desculpas dos organizadores e atores vinculados à cena, o efeito negativo permaneceu durante todo o período dos jogos. Ao que parece esta estratégia vem funcionando.
A partir de fatos como estes, as instituições que apresentam mostras e/ou eventos culturais, artísticos ou de diversão, vêm recorrendo à Classificação Indicativa, a CLASSIND, sistema criado em 1990, pelo Departamento de Promoção de Políticas de Justiça. A classificação define as faixas etárias em função da maturidade intelectual de crianças e adolescentes com a finalidade de auxiliar pais e responsáveis, na escolha de acesso a produtos veiculados pela televisão, cinema, vídeo, jogos eletrônicos, aplicativos e jogos de interpretação.
Com a intenção de orientar pais e responsáveis, os Museus, Galerias e demais instituições de Arte Visual, vem adotando a Autoclassificação como medida para alertar adultos responsáveis pelas pessoas de menor idade sobre o risco de haver, em seus espaços expositivos, materiais que, em função de crenças pessoais, podem gerar constrangimentos desnecessários.
A Autoclassificação exime as instituições de controlar ou censurar o que mostram, na medida em que alerta os responsáveis por tais pessoas, do risco de serem expostas a obras de arte, audiovisuais, eventos e festivais de conteúdos inadequados para certas faixas etárias.
Com isto auxiliam pais e responsáveis na decisão de liberar ou não os menores para visitarem ou frequentarem certos eventos. Esta é uma atitude madura, ao passo que tentar fazer valer suas percepções individuais sobre os demais é autoritária e antidemocrática.
É necessário clarear que, em relação a aspectos jurídicos, a imposição de crenças e valores de pessoas ou grupos só dizem respeito ao foro particular e íntimo e não corresponde a uma regra geral. A ordem constitucional prevê o exercício da autonomia existencial orientada pelo respeito à pluralidade de valores que a conformam em ambientes democráticos.
Deste modo não é admissível, que uma visão de mundo particular ou de grupo segmentado se imponha sobre as demais visões como modelo ou parâmetro coletivo. Contudo, ressalve-se que, caso haja lesão ao direito, cabe ação formal e processo legal no sentido de identificar e responsabilizar quem a promoveu e se o evento merece ou não ser coibido.
Não é admissível, onde se preza o Estado de Direito, que grupos, segundo seu modo de pensar e arraigados em suas crenças e dogmas, atuem contra outrem apenas por entenderem que certas manifestações são inadequadas. Em geral, recorrem a famigerada ofensa à moral e aos bons costumes. Há que se entender que estes dois conceitos são subjetivos e incapazes de representar o todo social e coletivo.
Manifestações de toda ordem só se tornam nocivas se promoverem lesões que possam ser configuradas, no contexto legislativo, como prejudiciais a outrem, portanto, não se caracterizam, a princípio, como agressão, ilegalidade ou crime.
É justamente por não encontrarem amparo na lei, que pessoas, associações, movimentos radicais e sectários usam de estratégias subalternas como difamar, confrontar e manipular a opinião pública por meio da difusão em rede de agressões verbais e execração pública, na tentativa de limitar a liberdade, por meios não legais como constranger pessoas e instituições. O objetivo é claro: impedir que tais manifestações permaneçam ou, simplesmente, não ocorram. É preciso pegar algo ou alguém para “Cristo”, como diz o ditado popular…
Esta é a tendência que vêm se manifestando nos últimos anos: reprimir algo que não combine com o gosto ou os “ideais” de grupos sectários. Este comportamento recorre ao autoritarismo pois, como não conseguem exercer o controle “a priori” e dentro da legislação daquilo que não admira, do que não crê e não valoriza o faz “a posteriori”, por meio insidioso da repressão, com o fim de exercer o controle e coibir os demais levando-os à auto censura.
Neste sentido, ao usar recursos como desacreditar tais manifestações, apelando para estratégias de baixo nível amparadas na propaganda falaciosa e informes distorcidos amplificados pelas redes sociais, forçam pessoas, instituições e o próprio poder público a recuar de suas ações por pura pusilanimidade.