Como aprender a amar o que já é seu?

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Juliano Gauche

Uma vida gostosa, ao lado da pessoa escolhida, fazendo o que se gosta, e vivendo do que gosta de fazer, seja construir casas, seja pintar o sete, seja cantar. Todos os livros, todos os filmes, todas as canções, nos desenham essa configuração como a personificação da felicidade. Estamos sempre buscando o lugar ideal, a pessoa ideal, o momento ideal, para então sentirmos aquela suspensão do tempo e do espaço, aquele momento em que flutuamos em nós mesmos, e que chamamos de felicidade.

Essa constante busca, que parece sintetizar toda a jornada humana, é a linha condutora da maior parte das obras que se destacam ao nosso redor, agora e sempre. O celebrado romance Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, nos coloca para seguir os passos de Kehinde, uma mulher trazida da África para o Brasil por organizações escravagistas, mas que nos leva por veredas de absurda beleza, como seu primeiro banho de cachoeira sob efeito da liamba, seus encontros amorosos, e sua constante luta para se manter ao lado dos filhos, do marido, e dos amigos, numa casa farta e segura. E nos poucos momentos em que ela consegue minimamente se aproximar da vida de seus sonhos, nós respiramos junto um pouco do que pode ser a felicidade real.

Na recém lançada cinebiografia da cantora Amy Winehouse, podemos ver esses momentos de felicidade sendo arrancados da vida no dente, na marra, por uma jovem agressiva e desesperada, buscando segurança e conforto, e só se decepcionando em sua curta jornada. Mesmo sendo um filme morno e cheio de equívocos, ainda assim Back to Black é salvo por eles, aqueles momentos em que Amy atingiu seus voos mais altos, os momentos em que foi plena, e que fizeram dela esse símbolo de força e beleza, tanto na música, quanto na vida.

Já na obscura Dark Matter, série lançada agora em 2024 pela Apple Tv, o protagonista vive aquele cômico dilema entre casar ou comprar uma bicicleta, ou seja, se comprometer numa relação, ou continuar em suas aventuras em busca de riquezas e outros tesouros. Escolhe a “bicicleta” para depois querer voltar atrás, criando assim uma caixa que o permite viajar por múltiplas dimensões onde tudo que poderia ser, e não foi, ainda vive, numa cascata de escolhas equivocadas. Uma típica “viagem na maionese” de quem não consegue assumir seu papel na vida, e vive apelando para fantasias, delírios e buscas vazias de toda espécie.

A imaturidade do homem médio, dentro dessa jornada rumo à felicidade, está cada vez mais em foco. Só mesmo apelando para o surrealismo, como o premiado filme Pobre Criaturas, lançado em dezembro de 2023, poderíamos vislumbrar com a clareza necessária uma mulher totalmente livre, falando e fazendo, exageradamente, tudo que lhe viesse à cabeça, e os homens sendo reduzidos a crianças confusas e choronas que não sabem lidar com o que não podem controlar.

Foi necessário criar uma mulher a partir de uma situação absurda, uma grávida que se atira de uma ponte, e depois de ser salva por um médico, recebe o cérebro da criança que não sobreviveu, tendo assim a chance de reaprender a viver depois de adulta. Então a acompanhamos em sua redescoberta do mundo, provando outra vez, como se fosse a primeira, cada fruta, cada gesto, cada toque, até que redescobre o sexo, para a alegria e para o desespero de todos que foram aparecendo em seu caminho.

Enquanto os homens são retratados como crianças pirracentas e inconsequentes em todas as obras citadas aqui, seja o pai que vende o próprio filho para mercadores de escravos em Um Defeito de Cor, para saldar dívidas de jogos e bebidas, ou o confuso hério/vilão de Dark Matter, que vive de dimensão em dimensão, tentando roubar a felicidade de uma outra versão mais feliz de sua própria vida, atrapalhando assim a vida de todo mundo ao seu redor, ou o arrogante marido da liberta de Pobre Criatura, chorando por ser incapaz de acompanhar o ritmo de quem ele jugava ser frágil demais, ou o sanguessuga que se dizia marido da Amy, a abandonando no fundo do poço…  enquanto os homens padecem nesse purgatório multidimensional de angústias e viagens sem fim, as mulheres estão sempre firmes naquilo que lhes são imprescindíveis.

Nessa simbólica jornada humana traçada pelas obras de arte, a felicidade parece ser tão óbvia quanto o sol que paira sobre nós, mas o diabo do mistério permanece: como aprender amar o que já é seu?

 

 

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Juliano Gauche

J.Gauche é autor e compositor. Publicou em 2002 seu primeiro livro de poemas. Entre 2003 e 2013, colaborou como letrista da banda índie Solana. Em 2013 começou seu trabalho solo, lançando até o momento quatro álbuns autorais. Desde 2002, segue publicando poemas, crônicas, contos e novelas em seus blogs, além de participar de coletâneas e colaborar no trabalho de outros autores e compositores.