A performance da artista Rubiane Maia: a língua sempre se dobra

Foto de Fernando Augusto
Fernando Augusto

É muito bom ver um trabalho que nos toca, seja um quadro numa galeria, seja uma tarefa trivial como a de pegar um ônibus e chegar bem ao destino, seja comprar algo no mercado e ser bem atendido, seja assistir uma performance artística em um museu. Neste caso foi uma performance, a da artista capixaba Rubiane Maia, ocorrida  no Museu Maes, no dia 30 de Agosto, dentro da exposição  itinerante da 35a. Bienal de São Paulo, em cartaz  em Vitória até 03 de novembro.

Como dizer  que a performance da Rubiane me tocou muito? Essa frase poderia bastar, pois uma impressão muito forte nos deixa sem palavras e todas as explicações são bem menores do que aquela primeira impressão. Mas precisamos falar, porque a fala é também  o nosso reino, é através  dela que ultrapassamos o que existe.

Duas mulheres entram em cena. Elas aparecem lentamente, uma (leitora) fica ao microfone, a outra (Rubiane) caminha para  o meio da sala e entra em um espaço raso, de vidro como um espelho d’água no chão.  Neste espaço  quadrado a artista se move,  lentamente, molha com a água barrenta a roupa, os cabelos, a boca, abaixando, se levantando, fazendo gestos de quem  planta, colhe, se alimenta,  trança, cheira, fala, pensa, ouve e faz ouvir o longo texto falado ao microfone.

Tudo começa devagar, com um sopro e vai se desdobrando em narrativas e sonoridades. A artista fala da língua  que desprende do seu do corpo e com ela discute, acredita e credita, negocia e se apresenta. Um texto poético que faz da narrativa poesia, da performance, teatro. O texto performance é potente e arrebatador, a plateia escuta em silêncio, alguém ao meu lado se emociona às lágrimas. Em mim faz surgir  vontade de falar, de escutar, de escrever, de movimentar. Então escuto, escuto a voz que sopra, sussurra, grita, geme, urra, assobia, gesticula, dança. Penso com Nietzsche: “só posso acreditar em um Deus que dança”. Um dado momento ela diz: posso tocar sua voz?

Foi assim que performance A língua sempre se dobra diante do inquestionável ou maldito, Livro-Performance, capítulo VI (2018-2024)  me tocou ao falar do corpo, do mundo, da fome, da memória,  da coragem. (Quem tem fome quer comer, não há negociação). E me fez ver como é doloroso e encantador o exercício do ser.

A sala inteira escutou com atenção. O corpo doeu ao ficar tanto tempo parado, atravessando oceanos, e descobrindo a história do arroz vermelho que foi trazido da África frutificou no Brasil e foi duramente proibido. Arroz que, por coincidência eu conheci ano passado, através do artista Marcelo Silveira em Recife, que  cozinhou e contou para uma pequena plateia ouvinte, a história desse grão resistente.

Saí  do museu com o que a artista disse ter vindo nos oferecer em sua performance: um grão  de arroz e eu acrescento: muitas  imagens. É muito bom ver um trabalho de arte que nos toca.

 

Serviço:

Seleção Especial da 35ª Bienal de São Paulo – Coreografias do Impossível,  em dois locais diferentes: o Museu de Arte do Espírito Santo Dionísio Del Santo (MAES) e o Espaço Cultural Palácio Anchieta.

De 28 de agosto a 03 de novembro de 2024

 

Foto de Fernando Augusto

Fernando Augusto

Artista plástico, pintor, desenhista e fotógrafo. Professor do Departamento de Artes da UFES. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP - Sorbonne).