A residência artística ou formas de esculpir o tempo*

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Jociele Lampert

Uma residência artística consiste em você “habitar” um projeto, longe de seu ambiente doméstico. Para isto fizemos escolhas, projetamos e organizamos, mas ir para longe, para encontrar algo que reside perto, é um desafio. Habitar um projeto, tem uma implicação com um tempo e um espaço, com início, meio e fim. Acrescemos a isto a condição de investigação, adensamento e atenção, que nos são retiradas pelo cotidiano.

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Interesse, ações inteligentes e continuidades, são possibilidades para fazer existir o que não existe em um modo inventivo, que é retirado de nós, quando entramos em nossa rotina. É complexo, porque o mundo não para de girar para criarmos. E não criamos com rotinas e hábitos, ou burocracias.

Então, fazemos escolhas, que implicam em mudanças e sobreposições. São mundos e modos paralelos para habitar o universo (por tempo determinado e em espaço previamente escolhido).

Pausar a vida doméstica e reinventar a estética do cotidiano, requer um movimento gentil, pois os filhos crescem, as vidas continuam a seguir, as notícias não cessam e as coisas únicas, mágicas e maravilhosas continuam a manifestar-se.

Encontrar algo que é genuinamente nosso, mas que é perdido no cotidiano exige coragem e movimento. Quando regressamos, nunca mais voltamos ao mesmo ponto, partimos de outro instante – é como ouvir a uma  que música que conhecemos e perceber, que havia uma nota diferente, que nunca tínhamos reconhecido, agora sabemos, já sentimos de outro modo.

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Paul Klee já nos indicou, que podemos não saber ao certo o que buscamos, mas quando encontramos identificamos. O cerne do movimento criativo, da construção de uma plasticidade, ou de uma prática artística, é configurado por momentos de entrega, de aproximação e afastamento com os próprios pensamentos.

Tal cena aproxima-se das montagens e traduções cinematográficas do Andrei Tarkovski. Das simulações, dos jogos de espelhamento da vida, das estruturas não lineares entre o que somos, o que sentimos e o que fazemos, ou mesmo, na forma como esculpimos nosso tempo.

Criamos quando decidimos habitar um tempo, pré-determinando o nosso “Solaris”, mas o mundo vai seguir, mesmo sem a nossa presença. Só Tarkovski daria essa lucidez para ausência (ou saudade).

*Estas anotações em diário de ateliê, na ocasião da imersão em residência artística e pedagógica, no projeto de práticas artísticas contemporâneas entre Portugal e Brasil, onde os artistas e investigadores Ivo Alexandre (Portugal) e Jociele Lampert (Brasil), articularam produção pictórica em colaboração por quatro meses.

Apoio: Centro de Investigações e Estudos em Belas Artes e Programa de Extensão Estúdio de Pintura Apotheke.

Referências:

https://ivoalexandre.com/português

https://www.jocielelampert.com.br/

https://www.apothekeestudiodepintura.com/

Foto de Jociele Lampert

Jociele Lampert

Professora titular na Universidade do Estado de Santa Catarina. Desenvolveu pesquisa como professora visitante no Teachers College na Columbia University na cidade de New York como Bolsista Fulbright em 2013. Em 2023 foi investigadora visitante na Faculdade de Belas Artes de Lisboa em Portugal, com bolsa CNPq. Coordena o projeto de cooperação internacional “O estúdio de pintura como um laboratório de ensino e aprendizagem em artes visuais” UDESC/CNPq. Tem Doutorado em Artes Visuais pela ECA/USP (2009); Mestre em Educação pela UFSM (2005). É líder do Grupo de Pesquisa Entre Paisagem UDESC/CNPq e CEO na Revista Apotheke e no Programa Permanente de Extensão Estúdio de Pintura Apotheke (UDESC). É professora de pintura no Departamento de Artes Visuais da UDESC.