O silêncio não tem paz: uma viagem pelos sons e pelas palavras
Dentro do carro sobre a praia a cem por hora vou em direção ao engarrafamento e preciso parar enquanto ele se esparge perto do terceiro píer de Camburi, antes do acidente. Os pingos da chuva na lataria e a sirene de ambulância com as motocicletas cruéis indo atrás dela se misturam à The National Anthem[1] – live in France do Radiohead, estragam a playlist do Spotify, fazem uma mix impossível, real. Enquanto estaciono, uns motoristas buzinam por perder tempo no entroncamento do poente. Estou dentro da aparição de uma orquestra que toca um mundo de densidades sonoras.
O excesso sonoro é uma marca desse contemporâneo. Se a linguagem é um corpo que se expande de nós de forma radial, para cada tipo de fala (e nossa escuta do mundo as vezes nem a percebe) existe um som que geralmente não é apropriado.
Martin Heidegger diz que “falamos quando acordados e em sonho. Falamos continuamente (…) mesmo quando não deixamos soar nenhuma palavra. Falamos quando ouvimos e quando lemos”[2].
Estamos mergulhados no excesso sonoro do mundo, eu e você, leitor/leitora, dançamos na linguagem que nos entranha familiar, dançamos de forma estranha e sem saber.
E por continuamente falarmos, nosso volteio está cada vez mais previsto e protocolado pela regência artificial do Big Data, inteligência que parece pretender transfigurar-nos no todo barulhento sem diferenciação, sem que o eu possa ser um outro[3]. No entanto, nossas palavras estão cheias de silêncios.
Já é madrugada e estou no meu escritório com um dos meus cadernos, ouço a chuva que ainda não passou. Meu ensaio talvez fosse sobre ela, cheguei a pensar. Com a voz rouca da asma mais falo do que canto pedaços de canções insólitas, de um silêncio vagante e absurdo.
É nesse momento que eu e você, leitor/leitora, nos vemos em cena, repare: Eu te digo (com mesma voz); O mundo está cada vez mais sonoro a cada música gravada, aumentaram o Master da mesa de som, além da gritaria das opiniões na praça pública das plataformas virtuais, e mesmo assim um abissal silêncio por vezes nos toma.
Mas você faz parte do mundo, as tuas palavras fazem parte dos sons do mundo; você me diz, e continua, implacável…; e se é assim talvez haja tanto barulho no mundo justamente pelo medo do que no silêncio pode haver de resto dele… e eu concordo.
Parece existir no silêncio um resto impossível de perder, é uma revelação sonora, indisfarçável, física. Vem no corpo. Nosso diálogo, leitor/leitora, por um instante terá acabado. No lugar dele ficou a constrangedora última frase de Hamlet, que você me recita; O resto é silêncio[4].
Agora escrevo novamente, e bebo meu café. Minha ficção vive por mim o trânsito sonoro da cidade lá fora. Num instante de solitude, estou em meu enclave literário, com meu continente inventado, seguro: Mas fica a corrente de um poema sanguíneo, e a onda grave do coração num ritmo: O artista sabe que sua presença no mundo é um ensaio sobre seu desejo de ir além do discurso social insosso; das pequenas bandeiras para ganhar batalhas combinadas; dos destinos anódinos e confortáveis da palavra no blá blá blá…(.n),.. palavra imolada e entregue ao plágio do entretenimento voraz, ao objeto consumível e à pose quantificável pelo algoritmo, aos passos e fórmulas de uma psicologia do sucesso, quiçá à aceitação de uma obsolescência programada para a arte. Saber que não existe paz no silêncio é saber que, na ausência do som e das palavras, algum ruído fica, ainda. E que é com ele que se cria e deixa mais um trabalho de arte no mundo.
[1] The National Anthem, canção da banda Radiohead, gravação ao vivo no álbum I Might be Wrong, de 2021.
[2] Do texto A Linguagem, de Martin Heidegger, no livro A Caminho da Linguagem, p. 7, Ed. Vozes/SP.
[3] “Eu é um outro”, frase do poeta Arthur Rimbaud escrita em carta ao amigo e poeta Paul Demeny, a 15 de maio de 1871, conhecida como Carta do Vidente.
[4] Última frase do personagem Hamlet, na peça de William Shakespeare.