Papel da escola na promoção do direito à literatura para todos

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Marli Siqueira Leite

Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações.

Vista deste modo, a literatura aparece claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação.

(“O direito à literatura”, Antonio Candido)

Há um texto obrigatório, especialmente, para todos do universo das Letras no Brasil: “O direito à literatura”, do professor Antonio Candido.

O teor do ensaio de um dos maiores mestres da crítica literária do país pressupõe o exercício da responsabilidade do poder público e da sociedade em garantir o acesso à literatura a toda a população. 

O poder transformador da literatura

Em palavras claríssimas e simples – característica dos grandes -, Candido destaca o poder transformador da literatura, porque a obra literária é capaz de ampliar e apurar o olhar do leitor sobre si, sobre o outro e sobre a realidade do entorno. Não importa qual seja a literatura: das fábulas a Dostoiévski. 

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Infelizmente, esse estímulo à leitura literária não chega ou, se chega, nem sempre ocorre da forma desejável a todos os cidadãos. Por esse motivo, a tarefa de formação de leitores de literatura acaba se tornando, no geral,  missão da escola. Não deveria ser.

Pedro Bandeira, escritor paulista, admirado por crianças e adolescentes, afirma que, na Europa, são as famílias a incentivar os filhos para o contato com a ficção. Uma vez implantado o desejo, o leitor caminha com as próprias pernas.

Contudo, diante de imensas desigualdades sociais e de outros fatores, inclusive ideológicos e políticos, o acesso ao livro torna-se extremamente limitado, quando é possível.

Desafios na formação de leitores

O ideal seria que a escolha das obras, desde a primeira infância, fosse livre e despretensiosa, sem a chancela do adulto, e livre dos critérios e dos crivos da escola.

Como professora de literatura, confesso me deparar com um incômodo paradoxo. O professor precisa incluir essas indicações literárias no seu planejamento, necessita escolher pelo outro.

Além disso, cabe a ele ainda avaliar essa leitura realizada pela criança ou adolescente, mesmo acreditando não ser este o caminho ideal. O motivo justifica o dilema. Muitos estudantes não desfrutam dessa oportunidade, que deveria ser oferecida na infância, de forma lúdica e prazerosa.

Como uma criança da periferia, por exemplo, poderia ter acesso a Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Ziraldo, Ricardo Azevedo, Roseana Murray, não fosse, muitas vezes, a iniciativa de um professor?

A influência da família e da escola

Entre os adolescentes, o desafio é ainda maior. Como esperar um jovem leitor sedento se a ele não foram apresentadas obras desafiadoras e atraentes?

O livro físico – sua concretude, suas imagens, seu cheiro e tato despertados – disputa espaço com outros tantos interesses, inclusive com as telas.

A experiência com o livro de papel, com capa, lombada e páginas, movidas pelo desejo do leitor é única para cada um e insubstituível, embora a tecnologia também possa cumprir seu papel de divulgadora de bons textos e de democratizadora (de certo modo) da leitura.

Hoje se pode ler por outras vias: pelo e-book, pelo laptop ou até mesmo pelo celular, como pode estar acontecendo agora, com o caro leitor. Nenhuma forma pode ser dispensada.

Leitura literária no espaço escolar

A questão é que as ofertas e a dispersão, típicas do espaço virtual, são gigantes e, diante de tantas possibilidades – vivas, móveis, dinâmicas -, a leitura de textos mais exigentes perde força.

O que nos faz, professores, seguirmos em frente, planejando a indicação dos clássicos e de outras obras mais recentes, é a crença de que, se não for pela iniciativa da escola, onde se expõem livros capazes de fazer imaginar, fabular, pensar, sentir, talvez o mundo fique menor para os humanos de hoje e do futuro.

Por isso, faz-se necessária a oferta e a prática da leitura literária no espaço escolar, sim, para garantirmos, de certo modo,  a crianças e jovens brasileiros, o direito à literatura, como defendeu o mestre Antonio Candido.

Foto de Marli Siqueira Leite

Marli Siqueira Leite

Professora há mais de 30 anos, formada em Letras pela PUC-SP com especialização em Educação pelo Espaço Pedagógico-SP. Após Mestrado em Letras na Ufes, foi professora na própria universidade, no Centro de Educação. Sua dissertação sobre o poeta Ronaldo Azeredo rendeu um livro e a curadoria de uma exposição na Casa das Rosas-SP e no Museu de Arte do Espírito Santo (MAES). Fez Doutorado em Educação na FEUSP e hoje atua como professora na Escola Americana de Vitória. [email protected]