Existem limites na educação infantil e adolescente? Entenda
“Este menino não tem limites!” Essa frase é bastante comum no nosso dia a dia e foi a base do primeiro artigo da série que estou escrevendo sobre limites, baseada na obra Limites: Três Dimensões Educacionais, de Yves de La Taille.
No texto anterior, discutimos o conceito de limites como obstáculos a serem transpostos. Neste texto, vamos explorar a ideia de limites de uma forma mais restritiva, que é o sentido mais comum da palavra.
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O que significa para uma criança não ter limites nos dias de hoje, quase um quarto de século após a publicação do livro de Yves?
E por que, e como, nós, adultos, devemos ensinar esses limites para crianças e jovens?
Limites na infância
De acordo com Yves de La Taille, limites e liberdade são conceitos que estão intimamente relacionados. A falta de um pode comprometer o outro.
Em casa, uma criança tem acesso a todos os seus brinquedos e decide com qual brincar. Na escola, aprendemos que, no contexto coletivo, precisamos estabelecer regras e normas que todos devem seguir.
Se uma criança deseja um brinquedo que está com outra, ela precisa aprender a negociar uma troca ou compartilhar. Essa habilidade não é algo que nascemos sabendo; ela precisa ser ensinada e modelada pelos adultos e, gradualmente, aprendida pelas crianças.
Freud já alertava que “a colocação de limites faz parte da educação. A ausência total dessa prática pode levar a uma crise de valores, um retorno a um estado selvagem onde só a lei do mais forte prevalece.”
É fácil imaginar o que aconteceria em uma sala de aula sem regras sobre o uso dos brinquedos: provavelmente, a criança mais forte dominaria a situação.
Yves ressalta que “sempre que estabelecemos limites necessários, eles devem se focar nas ações, não nos sentimentos.”
Ou seja, mesmo que uma criança se frustre com uma regra, o limite deve estar na ação (como emprestar ou trocar), enquanto os sentimentos devem ser considerados e trabalhados com cuidado.
Limites na adolescência
Passemos agora para a adolescência. Não é novidade que há algum tempo vivemos um culto à juventude. Antes de adentrar nas reflexões, que fique clara a minha admiração por essa faixa etária.
Trabalho com adolescentes desde que eu era um (iniciei minha carreira de professor quando tinha 18 anos). A criatividade, o senso de humor e justiça, o inconformismo e a inovação dos adolescentes enriquecem meus dias para muito além das horas passadas na escola.
No entanto, a ciência já provou que o córtex pré frontal, a parte do cérebro responsável por avaliar riscos e tomar decisões, só está completamente desenvolvido por volta dos vinte e poucos anos.
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Dado que essa parte do cérebro ainda está em formação, seria imprudente, do ponto de vista neurológico e comportamental, ignorar a importância de estabelecer limites também durante a adolescência. Mas como um adulto que gostaria de reviver sua juventude pode impor esses limites?
Estabelecendo limites e autonomia
Muitas vezes os pais deixam que os adolescentes tomem decisões atribuindo-lhes responsabilidades que eles não estavam preparados para ter.
Há as mais variadas justificativas, mas a mais comum costuma ser a de que por ter tido uma juventude restritiva, o adulto não deseja impor o que considera um sofrimento ao seu filho.
Vamos a um exemplo clássico, da época em que eu era adolescente. Alguns de meus amigos puderam dirigir antes de tirar a carteira de motorista.
Qual adulto não teve um amigo (ou foi o próprio) nessa situação? Eu mesmo vivia pedindo para que meu pai me concedesse esse “privilégio”.
O máximo que consegui foi que um tio me ensinasse a dirigir no final de semana, dentro de um estacionamento vazio no campus da Ufes, a universidade federal de nosso estado. Sair, jamais. Por quê? Era ilegal. Simples assim.
Eu ficava inconformado com o jeito “certinho” de ser do meu pai. Meu pai não tinha naquela época os argumentos da neurociência, que inclusive são usados pelas seguradoras de veículos, para impor esse limite. Mas ele me protegeu.
O que eu poderia ter vivenciado caso ele fosse mais leniente? Segundo Yves, “o que poderia ser interpretado como generosidade libertária acaba sendo visto pelos jovens como simples ausência.”
Nesse caso, a presença em forma de limites restritivos, que dá muito mais trabalho em um primeiro momento, está ligada ao cuidado, que por sua vez, vem do amor.
Dicas práticas para pais e educadores
O estabelecimento de limites está profundamente conectado ao desenvolvimento moral. A moral, seja pela visão de Freud, Piaget, Cristo ou Aristóteles, implica restrições que são necessárias para nosso desenvolvimento.
Piaget, por exemplo, considera que há duas morais: a heterônoma e a autônoma. Quando eu não saía para a balada de carro aos 16 anos porque meu pai não permitia, estava vivendo uma moral heterônoma, imposta por uma autoridade superior.
Hoje, como adulto, uso o cinto de segurança porque entendo a importância dessa prática para a minha segurança e a dos outros.
Isso é um exemplo de moral autônoma, que surge de nossa compreensão interna e acordos interpessoais. Para que uma criança ou um jovem alcance essa autonomia, é necessário passar pela fase da heteronomia. É um processo de evolução.
Algumas ações estratégicas
Ao invés de recorrermos a sermões pouco eficazes, melhor considerarmos ações estratégicas que favorecem o desenvolvimento da autonomia, e consequentemente, o estabelecimento de limites a serem respeitados. Que tal…
- programar encontro de amigos dos filhos? Incentivar dormidas em casa de amigos? Ao se expor às regras de uma casa que não a sua, a criança ou adolescente, está diante de uma ótima oportunidade de se autorregular;
- definir horários claros para as refeições em dias da semana com flexibilidade para finais de semana? A rotina organiza nossas vidas e a flexibilidade favorece nossa adaptabilidade a diferentes contextos;
- limitar o tempo de uso de tela das crianças, jovens e adultos? Esse limite, quando não respeitado, ultrapassa a fronteira entre o hábito e o vício, e aí pode ser quase impossível voltar ao patamar saudável.
- estabelecer uma mesada para seu filho? Aprender que os recursos, no caso os financeiros, são finitos, pode ser uma eficaz forma de desenvolver a autonomia e a noção de limites a serem respeitados.
Yves de La Taille conclui que “a autonomia não é a liberdade de fazer qualquer coisa. É o respeito pelo outro e a exigência de ser respeitado.”
Portanto, quando ouvimos que uma criança não tem limites, estamos na verdade falando sobre alguém que ainda não desenvolveu autonomia.
Este ser pode estar se sentindo desamparado e, sem aprender a importância dos limites, pode acabar correndo riscos desnecessários tanto no presente quanto na vida adulta.
Entender que limites restritivos são essenciais para nossa evolução individual e coletiva é um passo importante para todos nós, crianças, jovens e adultos.