Saiba quais são os limites para proteger as crianças na era digital

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Cristiano Carvalho

Em 1984, romance distópico de George Orwell, os cidadãos vivem sob vigilância em massa, com o Estado controlando até mesmo seus pensamentos.

Na fictícia Oceânia, o Big Brother é a autoridade máxima, monitorando a vida pública e privada por meio de câmeras onipresentes.

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Publicado em 1949, esse clássico surge em um mundo traumatizado pelo totalitarismo e pelas duas grandes guerras mundiais. Mas o que 1984 tem a ver com limites e intimidade?

Reflexões sobre limites e intimidade

No primeiro artigo da série, abordei os limites que precisam ser transpostos para a evolução do indivíduo, baseando-me na ótica do psicólogo e professor Yves de La Taille.

No segundo texto, tratamos dos limites a serem respeitados, refletindo sobre o permitido e o proibido. Neste último artigo, focaremos nos limites a serem impostos para proteger a intimidade, especialmente das crianças e adolescentes.

O novo Big Brother

Se Orwell estava preocupado com a vigilância excessiva do estado totalitário sobre seus cidadãos, que viviam em um mundo monitorado por câmeras estatais, hoje devemos nos atentar para as câmeras privadas, que estão em nosso poder, em poder de nossos jovens, e que possuem o potencial de expor nossas vidas e de nossos filhos a todo o momento para um número incalculável de pessoas, conhecidas ou não.

Qual é o impacto dessa exposição permanente e pouco seletiva na formação e no desenvolvimento do ser humano?

“Tirania da liberdade” e os desafios da intimidade na era digital

Quando escreveu Limites: três dimensões educacionais, La Taille já nos alertava para a “tirania da liberdade”, em um mundo pré-smartphone e pré-redes sociais. Ele questionava a necessidade imperativa de nos comunicarmos constantemente, revelando pensamentos e sentimentos.

Quase um quarto de século depois, educadores e pais enfrentam uma questão que já pode ser considerada um problema de saúde pública. Vamos aos exemplos, casos genéricos, mas que qualquer um de nós pode atribuir nomes reais de nossas relações.

Superexposição nas redes: um perigo para as crianças

Um rápido scroll no Instagram revela fotos de crianças em diversas atividades, dentro e fora de casa. Antes da era digital, essas fotos eram compartilhadas apenas com familiares e amigos próximos, e mantidas sob nosso controle em álbuns físicos.

Hoje, não sabemos quem tem acesso às imagens de nossos filhos, nem como elas podem ser usadas no futuro. Antes de postar, vale uma pausa para perguntar: “Será que a criança fotografada aprovaria essa postagem quando adulta?”.

Vou dar uma pista. Quem é pai ou mãe de adolescente, já reparou que quando eles querem homenagear seus familiares eles têm buscado usar fotos deles com os familiares de quando eles eram crianças?

Basta pensarmos no grau de criticidade do adolescente com sua própria aparência para avaliar os possíveis danos de uma superexposição das suas imagens. 

Direito ao segredo: respeitando a intimidade das crianças

Outro ponto crucial é o direito ao segredo. La Taille defende que toda criança tem o direito de impor limites à intrusão de outros, inclusive dos pais, em sua intimidade. Não respeitar esse limite pode gerar culpa ou a sensação de obrigação de comunicar tudo o que sentem e pensam.

Como pai, solidarizo-me com todos os pais que consideram essa uma fronteira um tanto desafiadora na relação com os filhos. Não há problemas em reconhecer que, diante de nosso instinto de proteção, queiramos saber de tudo.

Mas respirando fundo e pensando criticamente, sabemos que não seria bom para os filhos nem para nós mesmos termos contato com tudo o que eles sentem e pensam.

Impacto da exposição digital na saúde mental da geração Z

Considerando que o desenvolvimento da personalidade e a conquista da autonomia passam pelo controle seletivo do outro ao eu, há um fenômeno em curso que nos coloca em estado de alerta.

O psicólogo e professor Jonathan Haidt, da Universidade de Nova York, publicou recentemente o livro A Geração Ansiosa. Na obra, ele discorre sobre como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais.

Ao compartilhar onde estão, o que fazem, como se sentem, o tempo todo e para um grupo amplo e irrestrito de pessoas, crianças e jovens estão atingindo níveis jamais observados de ansiedade e depressão.

Cultura da exposição e suas consequências

Frequentemente me deparo com adolescentes que se sentem excluídos por terem visto registros de amigos em festas ou passeios para os quais não foram convidados.

O que era celebrado de forma seletiva e discreta em um passado não tão distante, passou a ser objeto de exposição e monitoramento constante. Resultado: falta de presença, ansiedade e angústia de sobra.

Lembro-me de um jantar de aniversário da minha filha, quando ela tinha 13 anos, em que tivemos que pedir aos poucos convidados: por favor, não postem. Curtam este momento.

Nós escolhemos estar juntos hoje e não precisamos avisar ao mundo que estamos aqui agora. Foi um convite para impor limites da privacidade naquela ocasião especial.

Desafios para a geração Z no mercado de trabalho

Como estamos falando da geração Z, termo que se refere a quem nasceu após 1995, já há um grupo de jovens adultos que está próximo dos 30 anos, e consequentemente já se encontram no mercado de trabalho.

Como viveram a adolescência hiperconectados e revelando seus sentimentos e rotinas nas redes sociais, muitas vezes sentem-se à vontade para revelar detalhes de sua intimidade e de seus pensamentos que acabam entrando em conflito com suas vidas profissionais.

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O que dizer de uma ausência no trabalho na segunda-feira após uma sequência de postagens em festas no final de semana? E o que pensar de desabafos nos stories que podem ser decifrados das mais variadas formas por colegas de trabalho?

Esse tema é de tamanha relevância que as empresas, além de checar redes sociais durante o processo seletivo de seus candidatos, estão incluindo em seus programas de formação continuada cursos de posicionamento digital. Em todos eles, a questão dos limites é recorrente.

Importância de proteger a intimidade na era digital

Muita coisa mudou desde o pós-guerra até os dias de hoje, especialmente com a chegada da internet e das redes sociais. Se em 1984 era o Estado que monitorava os cidadãos, em 2024, somos nós mesmos que permitimos ser monitorados por todos.

Contudo, como disse a filósofa Hannah Arendt, “toda vida emerge da escuridão e precisa da segurança da escuridão para chegar à maturidade”.

Como educadores e pais, é nossa responsabilidade garantir essa segurança e promover a autonomia das crianças e jovens, ajudando-os a impor limites que protejam sua intimidade e os guiem rumo à maturidade.

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Cristiano Carvalho

CEO da Escola Americana de Vitória. Educador há mais de 30 anos, professor de Inglês com especialização em linguística aplicada. Coordenou projetos bilíngues e de educação internacional em escolas de educação básica, construindo e gerindo currículos e equipes docentes.