Você também pode escrever: superando regras gramaticais e preconceitos literários
Percebo por aí muitas pessoas que manifestam timidamente seu desejo de escrever: escrever histórias inventadas, escrever memórias, escrever poemas. Também noto que quase a totalidade dessas pessoas acredita não poder escrever literatura porque não domina as chamadas regras de português (regras da Gramática Normativa).
Quando vejo isso, gosto de contar a história de Carolina Maria de Jesus, uma importante escritora e compositora brasileira que teve apenas dois anos de educação formal. Sim, apenas dois anos!
Nascida em Sacramento, Minas Gerais, Carolina se mudou para São Paulo em busca de melhores condições de vida. Semianalfabeta, sustentava-se como catadora de papel e, nos cadernos que encontrava no lixo, registrava suas observações sobre a vida na favela do Canindé.
Seu diário, “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada”, publicado em 1960, tornou-se um best-seller e foi traduzido para diversos idiomas. Esse livro nos oferece uma visão crua das condições de vida nas favelas, e a obra de Carolina é reconhecida por seu valor literário e social, destacando-se como uma voz potente da periferia urbana no Brasil.
Uso o exemplo dessa autora porque ela prova que é possível escrever poesia e narrativa sem dominar todos os detalhes da gramática. Em sala de aula, meu papel é desconstruir a ideia de que é necessário conhecer uma “técnica” específica ou seguir as “regrinhas” do português para escrever.
João Cabral de Melo Neto, na obra “Poesia e Composição”, afirmou que “A poesia não exige técnicas formais para ser criada; é uma manifestação espontânea do ser, onde a emoção e a intuição têm primazia sobre as regras e convenções”.
É claro que se pode estudar poesia de diferentes formas, compreendendo suas técnicas, analisando suas estruturas e aprendendo com os autores clássicos. Contudo, a poesia não se limita a esses estudos formais. Ela também pode ser criada por qualquer pessoa, independentemente de sua formação acadêmica, que deseje expressar suas emoções e pensamentos de maneira autêntica, mesmo sem um conhecimento aprofundado das regras ou tradições literárias.
O autor Marcos Bagno, em “Preconceito Linguístico: o que é, como se faz”, assim como João Cabral, ressalta que “A escrita de poemas por estudantes de forma intuitiva revela a habilidade inata de brincar com a linguagem, explorando sua musicalidade, ritmo e potencial expressivo sem a necessidade de rígidas instruções formais”.
Durante a criação de poemas, os professores devem incentivar os alunos a explorar sua própria veia artística. Se surgir algum desvio gramatical, é importante perguntar se ele foi intencional ou não, explicar qual seria a forma convencional de uso normativo e ensinar sobre a liberdade poética: o escritor tem autonomia para expressar sua arte como bem entender.
Então, se você sente o desejo de escrever, simplesmente coloque as palavras no papel como elas vêm à sua mente, sem se preocupar demais. Claro, seus textos vão melhorar à medida que você se empenha e pratica, mas, no fundo, todos somos capazes de escrever um belo poema.
Deixo aqui um poema de Carolina Maria de Jesus, da obra “Antologia pessoal”, que nos ensina que, para escrever, não precisamos de muitos diplomas ou de vasta intelectualidade, mas sim de uma visão sensível da vida.
Muitas fugiam ao me ver…
Muitas fugiam ao me ver
Pensando que eu não percebia
Outras pediam pra ler
Os versos que eu escrevia
Era papel que eu catava
Para custear o meu viver
E no lixo eu encontrava livros para ler
Quantas coisas eu quiz fazer
Fui tolhida pelo preconceito
Se eu extinguir quero renascer
Num país que predomina o preto
Adeus! Adeus, eu vou morrer!
E deixo esses versos ao meu país
Se é que temos o direito de renascer
Quero um lugar, onde o preto é feliz.