A caligrafia não morreu e eu vou explicar por quê

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Larissa O’Hara

O ensino de caligrafia está em desuso no universo pedagógico atual, especialmente na realidade brasileira, com a chegada da pedagogia moderna de teor construtivista, predominante nas últimas três ou quatro décadas.

Assim, a caligrafia foi praticamente eliminada das escolas, acompanhada de várias práticas que, embora rotuladas como antiquadas, ainda mantêm relevância e significado. Em geral, os alunos consideram essa atividade enfadonha, resultando em uma percepção generalizada de que sua prática é despropositada.

Neste contexto, não me refiro a uma caligrafia artística, com letras inclinadas para a direita e cheias de floreios e rococós, como se via até o final do século XX, mas a uma escrita simples, legível e padronizada, que emergiu do processo de higienismo daquele período. Uma caligrafia verticalizada, por exemplo, favorece e inclui os canhotos, que, por muito tempo, foram forçados a escrever com a mão oposta.

Outro aspecto importante é a frequente confusão entre o ato de escrever e a habilidade de redigir. Muitos educadores veem a caligrafia apenas como uma atividade mecânica, desmerecendo seu valor educativo. Contudo, essa visão ignora que a escrita cursiva requer coordenação motora, disciplina e um processo de memorização, todos essenciais para a organização do pensamento e a clareza na expressão.

No dia a dia da sala de aula, a criança que demora para escrever de forma legível apresenta diversos prejuízos no cumprimento das tarefas escolares e, consequentemente, na aprendizagem.

No Brasil, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) prevê o ensino da habilidade de escrita cursiva nos primeiros anos do ensino fundamental. No entanto, como professora de Língua Portuguesa, frequentemente me deparo com letras ilegíveis, mesmo entre alunos dos anos finais do ensino fundamental e do ensino médio. Embora os cadernos de caligrafia tenham caído em desuso, nunca hesitei em sugerir seu uso nesses casos. Em minha perspectiva como educadora, esses cadernos têm valor pedagógico.

Nos últimos anos do ensino fundamental, faço questão de adotá-los em alguns momentos de minha prática educativa, para que, ao menos uma vez, os estudantes possam vivenciar uma experiência completa com a letra cursiva e a letra bastão (maiúsculas e minúsculas) e aprendam as formas padronizadas de cada letra.

Sem orientação específica, muitos alunos acabam criando suas próprias formas de escrita, como se não houvesse um padrão a seguir. Algumas variações são aceitáveis; outras não. Por exemplo, uma aluna minha, em vez de fazer a curvinha no “f” minúsculo cursivo para a direita, fazia para o outro lado, ignorando a forma tradicional e confundindo-a com a letra “j”, como na imagem:

Caderno de caligrafia

Foto: Larissa O’Hara

Além disso, há alunos que omitem detalhes fundamentais, como os pingos nos “i” e “j”. É essencial que compreendam que as letras seguem um padrão estabelecido para facilitar a comunicação. Quando esse padrão é excessivamente desvirtuado ou a escrita se torna ilegível, a clareza da mensagem fica comprometida.

Esses desvios refletem uma familiaridade insuficiente com a escrita cursiva e ressaltam a importância de práticas que, longe de serem antiquadas, podem desenvolver habilidades motoras finas e fortalecer o vínculo entre pensamento e expressão. Retomar o ensino da caligrafia não é um retrocesso; ao contrário, é um recurso valioso para enriquecer o processo de aprendizado, formando alunos mais cuidadosos e claros em sua comunicação escrita.

DIGITAÇÃO X LETRA BASTÃO X LETRA CURSIVA

Embora à primeira vista a caligrafia possa parecer uma habilidade meramente estética, sua prática envolve diversas áreas do encéfalo, incluindo regiões motoras, visuais e cognitivas.

A neurociência tem demonstrado que a caligrafia exerce um impacto significativo na saúde cerebral, estimulando circuitos neurais que permanecem inativos durante a digitação. Esse processo neurológico da escrita à mão envolve a coordenação motora fina e ativa áreas cerebrais ligadas ao desenvolvimento cognitivo e à memória, diferenciando-se significativamente da digitação.

Além disso, há uma diferença importante entre a letra bastão (ou letra de forma) e a letra cursiva. Enquanto na letra bastão o aluno escreve cada letra isoladamente, o que demanda mais tempo e interrompe o fluxo de pensamento, a letra cursiva promove maior fluência e rapidez na escrita.

A letra cursiva permite que o lápis permaneça continuamente no papel, agilizando o registro das ideias. Uma vez automatizada, essa forma de escrita possibilita que o cérebro dedique mais atenção a aspectos como ortografia, compreensão do sentido das palavras e escolha de vocabulário, essenciais, por exemplo, na elaboração de uma redação.

Um estudo recente publicado na “Nature”, em 26 de março de 2021, intitulado “High-performance brain-to-text communication via handwriting”, revela a influência positiva da caligrafia no cérebro. O estudo indica que a prática da escrita à mão ativa redes neurais que não são acionadas durante a digitação, destacando áreas cerebrais associadas à leitura e à compreensão de linguagem.

A professora Karin James, da Universidade de Indiana, em um estudo denominado “Handwriting versus typing: The role of writing in literacy development”, com crianças de quatro a seis anos, demonstrou como a escrita à mão se relaciona com o desenvolvimento da alfabetização.

Da mesma forma, a professora Virginia Berninger, da Universidade de Washington, em sua pesquisa intitulada “The Importance of Handwriting in Literacy Development: Insights from Cognitive Neuroscience”, comprovou que escrever em letra cursiva, letra de forma e digitar ativam funções cerebrais relacionadas, porém distintas.

Esses achados reforçam a importância da caligrafia, especialmente da escrita cursiva, não apenas para o desenvolvimento cognitivo e motor, mas também para a consolidação de redes neurais essenciais ao aprendizado e à leitura.

SOBRE O BELO E O ESMERO

A etimologia da palavra “caligrafia” remonta ao grego, sendo que “cali” traduz-se como “belo” e “grafia” significa “escrita”. Gosto muito de um livro de Umberto Eco intitulado “História da beleza”, que explora a noção de “belo” associada à virtude e ao bem, além de traçar um panorama da beleza na arte ao longo da história.

Trata-se de um livro notável, que reflete a sofisticação do pensamento do autor e apresenta qualidade gráfica impecável: metalinguisticamente, um verdadeiro exemplo de beleza.

Na contramão disso, percebo na sociedade ocidental contemporânea um certo desprezo pelo belo e pela busca do esmero em realizar tarefas com qualidade. O perfeccionismo, no sentido de busca por excelência em qualquer atividade, é frequentemente visto como um defeito.

Valores como zelo, responsabilidade e perseverança são, muitas vezes, subestimados. No ambiente escolar, é comum que os alunos entreguem suas atividades sem nenhum apreço a elas, beirando a indiferença e o escárnio.

“Pois o que sustenta a delicadeza é a força e o esmero: o cuidado extremo em ser perfeito na vida.” (Clarice Lispector, “A Paixão segundo G.H.”) — ao orientar meus alunos a deixarem o espaço adequado no início de cada parágrafo, a escreverem com letras cuidadosas, a diferenciarem as maiúsculas das minúsculas e a não se esquecerem das pontuações, como o ponto final, estou indo além do ensino da gramática e redação; estou enfatizando a importância desses valores.

Esse zelo, presente em cada traço, não apenas contribui para a clareza e qualidade da expressão escrita, mas também se reflete no processo de aprendizagem como um todo. Ao cultivar o cuidado e a atenção aos detalhes, os alunos desenvolvem disciplina e concentração, qualidades que favorecem o aprendizado e reforçam o compromisso com a excelência em diversos aspectos da vida escolar e pessoal.

SOBRE IMPACTOS FUTUROS

Ao final do ciclo básico, os estudantes que desejam prestar vestibular enfrentarão a exigência de uma escrita legível. No Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), a legibilidade é um critério fundamental para a redação, conforme destacado no manual do exame. Os alunos podem ser penalizados quando suas palavras não são compreendidas pelos corretores de redação.

Como a prova exige que a redação seja feita à mão (e não digitada), aqueles que dominam a letra cursiva tendem a ter um desempenho superior, devido à economia de tempo e à fluência no pensamento que essa prática proporciona.

Embora a legibilidade não supere a importância do conteúdo, uma escrita clara, bem elaborada — e por que não dizer, bela — pode tornar os leitores mais receptivos ao que está sendo expresso. No caso do Enem, os avaliadores da redação são os responsáveis por ler e interpretar os textos. Para alunos que almejam um desempenho excepcional, essa habilidade pode se transformar em um diferencial.

Para aqueles que questionam a importância da caligrafia, vale destacar que esse tema tem implicações significativas na vida das pessoas.

Um levantamento feito pela Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos revelou que a dificuldade em ler a letra de médicos pode resultar em cerca de 7 mil mortes anuais, devido a erros na leitura da prescrição de medicamentos. Embora não existam estudos equivalentes no Brasil, é de se supor que situação similar ou ainda mais grave ocorre por aqui, devido à realidade do letramento, que ainda apresenta desafios consideráveis.

Por fim, não defendo um saudosismo educacional nem um conservadorismo na educação, mas certos aspectos merecem uma análise crítica e uma reconsideração. Também não se trata de rejeitar as tecnologias — elas estão presentes e vieram para ficar, para o bem ou para o mal.

No entanto, é importante considerar um retorno à caligrafia cursiva como uma prática que desenvolve a coordenação motora fina, a rapidez na escrita e a fluência do pensamento. Há uma abundância de estudos científicos que comprovam os benefícios que esse aprendizado pode trazer às pessoas.

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Larissa O’Hara

Graduada, mestra e doutora em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Possui especialização em Revisão de Texto e em Psicopedagogia. Trabalha como professora há mais de quinze anos, tendo atuado em diversas instituições. Já acompanhou o desenvolvimento de centenas de alunos em aulas ministradas em seu curso de redação. Publicou variados livros. Atualmente, é professora efetiva na rede estadual de ensino do Espírito Santo.