“Livro ilustrado” e “livro com ilustração” é a mesma coisa?
Resgate aí, na sua memória, como era o primeiro telefone a que você teve acesso: tinha discagem rotativa (com aquele saudoso barulhinho na ida e na volta de cada número discado)?
Tinha teclas com números brancos fixadas no teclado preto e um longo fio todo enroladinho (e, quase sempre, emboladinho)?
Ou você já chegou em tempos mais modernos e carrega a lembrança do telefone sem fio, apitando para avisar sobre a bateria baixa e para te fazer correr para encaixá-lo na base?
É… A tecnologia das comunicações tem evoluído rápido demais! Numa só vida vimos todos esses aparelhos de telefone se transformarem em celulares com telas touch screen, em que a transmissão da nossa voz se tornou a mais singelas das funções.
E os livros? Será que eles – assim como os telefones – também têm se transformado?
Não me refiro aqui ao suporte em que estão concebidos: os primeiros livros de que se tem notícia foram esculpidos em pedra (como “A epopeia de Gilgamesh”, de 2.000 a.C), em seguida vieram os pergaminhos, depois o códex e hoje, como bem sabemos, os livros de papel concorrem com os livros em formato digital.
Mas a minha indagação tem outra perspectiva: o conteúdo da comunicação, o jeito como a linguagem é articulada nos livros – a forma de escrever, a extensão dos textos, os modos de ilustrar e de diagramar – também tem se transformado?
A resposta é sim. Como resumiu Gonçalves Dias: “Urge o tempo, os anos vão correndo. Mudança eterna os seres afadiga! […] Tudo se muda, tudo se transforma”.
Numa clara relação com a nossa vida acelerada, é fácil perceber que a extensão dos textos verbais é cada vez menor na atualidade. “Textão” é coisa antiga…
Dom Quixote com seus 126 capítulos parece – inclusive para nós adultos – um “livro falésia”, na feliz expressão de Daniel Pennac, quase impossível de atravessar. Hoje, a arte da palavra exige dizer muito com a menor quantidade possível de caracteres.
Para além disso, sobretudo na literatura infantil e juvenil, as ilustrações passaram a desempenhar um novo papel, construindo – tanto quanto as palavras – o sentido dos textos.
Notadamente a partir de 1963, com a publicação da obra “Where the wild things are”, de Maurice Sendak, assistimos a uma progressiva mudança na relação texto verbal x texto imagético. Essa mudança fez surgir um possível “novo gênero literário”: os livros ilustrados ou livros-álbum.
Nesses livros, o peso das palavras é igual ao peso das imagens; a interpretação do texto só será adequada se o leitor se demorar na apreciação das ilustrações que compõem a página (ou na falta delas, já que os vazios, os espaços em branco, também são propositais e comunicam com sutileza aquilo que as palavras tornariam explícito demais e, portanto, menos encantador).
Nos livros ilustrados, palavras e imagens funcionam como letra e melodia para as canções. A leitura da letra, separada da melodia, proporciona uma experiência.
Mas só a execução conjunta de letra e melodia é capaz de retratar, com inteireza, a obra musical composta pelo artista.
Desse mesmo jeitinho são os livros ilustrados: se o leitor acessar o livro atento apenas às palavras, não alcançará todos os elementos, todas as camadas, todos os sentidos da obra literária.
Ela só estará plenamente revelada a quem se puser a degustar imagens e detalhes gráficos, prestando atenção, por exemplo, às guardas do livro (que geralmente já trazem elementos importantes da história), à tipografia, ao modo como as palavras foram diagramadas e a todos os outros elementos visuais.
Antes dos livros ilustrados, conhecíamos apenas os livros com ilustração. Neles, o texto verbal é completo em si mesmo. A ilustração seria dispensável, aparecendo apenas para embelezar o livro e para traduzir em imagem exatamente aquilo que as palavras já haviam antecipado.
A experiência de leitura, a apreensão do sentido integral da obra literária, depende apenas do contato com as palavras, sendo a ilustração um elemento adicional (não fundamental) do livro.
Em síntese, no livro ilustrado o texto verbal e as imagens precisam ser lidos juntos para que o sentido da obra literária esteja completo. Palavras e imagens dependem umas das outras para construir o livro!
No livro com ilustração, as imagens são apenas uma tradução visual do que as palavras já haviam dito.
Se você quiser se aventurar, junto com sua criança, pelo universo dos livros ilustrados, deixo aqui sugestões incríveis para conhecer esse novo gênero literário:
- A catástrofe (Iwona Chmielewska e Guilherme Semionato)
- Gorila (Anthony Browne)
- O anjo da guarda do vovô (Jutta Bauer e Sofia Mariutti)
- Os invisíveis (Tino Freitas e Odilon Moraes)
- Os vizinhos (Einat Tsarfati)
Por último, preciso registrar que também existem os moderníssimos livros de imagem, mas isso é assunto para outra coluna!