“O Vampiro de Curitiba”: Dalton Trevisan morre aos 99 anos, mas legado permanece

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Larissa O’Hara

Dalton Trevisan, conhecido como “O Vampiro de Curitiba”, título de uma de suas obras mais emblemáticas publicada em 1965, faleceu neste mês de dezembro de 2024, aos 99 anos. Mestre em criar personagens solitários, noturnos e urbanos, suas narrativas exploram o lado mais sombrio e decadente da vida cotidiana.

Recluso por excelência, Trevisan evitava qualquer tipo de exposição pública. Não concedia entrevistas, não participava de eventos literários e fugia de fotografias, cultivando um mistério em torno de sua figura, que ampliou ainda mais o mito do “vampiro”.

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Seu estilo direto e ágil revela os dramas humanos: personagens que se movem entre as expectativas de felicidade e realização e uma realidade crua, desumana e frustrante. As relações humanas que apresenta são degradantes. A indiferença é, em suas obras, um dos sintomas mais contundentes do mal-estar do século XX.

“Uma vela para Dario”

Entre tantos contos marcantes de variadas coletâneas, tenho um apreço especial por “Uma vela para Dario”, que é, sem dúvida, um dos que mais me impressionam. Já tive a oportunidade de trabalhar com esse conto em sala de aula, e sempre me impacta a forma como ele desperta reflexões profundas sobre a indiferença humana e a fragilidade das relações sociais.

O protagonista, Dario, é um homem apressado que, exausto, se senta na calçada, encostado à parede, com o cachimbo na mão. Algumas pessoas lhe perguntam como está, mas ele mal consegue responder.

A partir desse momento, sucessivos acontecimentos vão lhe roubando a dignidade. Forma-se um tumulto ao seu redor, alimentado por uma curiosidade mórbida. Uma velhinha, um senhor gordo, crianças, moradores da rua e um taxista compõem a multidão que cresce em torno de Dario, cada vez mais vulnerável:

“A velhinha de cabeça grisalha grita que ele está morrendo. Um grupo o arrasta para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protesta o motorista: quem pagará a corrida? Concordam chamar a ambulância. Dario, conduzido de volta e recostado à parede, não tem os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata”.

Já nessa passagem destaca-se o aspecto econômico — sem ninguém para pagar a corrida, Dario é devolvido à calçada, como se sua humanidade fosse irrelevante. Além disso, furtam-lhe até os poucos objetos que utiliza. Também impressiona a falsa preocupação dos curiosos, que mascara o interesse genuíno pelo sofrimento alheio. Em vez de oferecer ajuda, o que se vê é exploração, caos e um espetáculo grotesco. O ápice dessa indiferença surge neste momento:

“Registra-se correria de uns duzentos curiosos que, a essa hora, ocupam toda a rua e as calçadas: é a polícia. O carro negro investe a multidão. Várias pessoas tropeçam no corpo de Dario, pisoteado dezessete vezes”.

A cena ganha contornos ainda mais sombrios com a persistência do roubo dos pertences de Dario ao longo do conto. No desfecho, o guarda, ao inspecionar o cadáver, encontra apenas bolsos vazios, demonstrando sua real despersonalização:

“O guarda aproxima-se do cadáver, não pode identificá-lo — os bolsos vazios”.

Em toda essa espetacularização da vida, há um pequeno e solitário gesto de solidariedade. A vela, mencionada no título, é trazida por um menino descalço:

“Um menino de cor e descalço vem com uma vela, que acende ao lado do cadáver”.

Então, o conto se encerra de maneira impactante, revelando a solidão e o abandono total de Dario:

“Fecham-se uma a uma as janelas. Três horas depois, lá está Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó. E o dedo sem a aliança. O toco de vela apaga-se às primeiras gotas da chuva, que volta a cair”.

Curiosamente, o nome do personagem, Dario, é significativo, pois ele serve para humanizar a figura que, ao longo da narrativa, se vê despojada de sua identidade e dignidade. Seu nome aparece como uma marca inicial de individualidade, que gradualmente é apagada à medida que ele se torna um objeto da indiferença e exploração dos outros.

A modernidade líquida da indiferença

O escritor Dalton Trevisan

O escritor Dalton Trevisan | Foto: Reprodução/Instituto Moreira Salles

A crueza do conto “Uma vela para Dario” estabelece um diálogo contundente com o conceito de modernidade líquida, desenvolvido pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman.

Em sua análise, Bauman caracteriza a sociedade moderna pela fluidez e fragilidade das relações humanas, que se tornaram efêmeras e descartáveis.

A indiferença, que perpassa o texto de Trevisan, reflete essa dinâmica, na qual o outro é visto apenas como um objeto utilitário, ou mesmo uma passageira curiosidade, cuja importância se dissolve tão rapidamente quanto surge.

Dario, personagem central do conto, é reduzido a um corpo esvaziado de humanidade enquanto os transeuntes ao seu redor manifestam uma curiosidade mórbida, mas sem qualquer real preocupação com sua vida. 

Bauman argumenta que, na modernidade líquida, as relações são movidas pelo consumo e pela satisfação imediata, sem profundidade ou comprometimento. Esse traço aparece claramente no conto, em que a atenção dispensada a Dario não é pautada pela solidariedade, mas pelo espetáculo da desgraça alheia.

Quando ele deixa de ser “útil” como objeto de interesse, torna-se invisível, uma presença irrelevante, abandonada até mesmo pelos seus pertences, roubados em um ato de oportunismo desumano.

Além disso, o desengajamento emocional presente na sociedade moderna é evidenciado na apatia coletiva diante do sofrimento de Dario. As pessoas, em vez de ajudá-lo de maneira genuína, instrumentalizam sua fragilidade, transformando-a em uma distração efêmera ou até em oportunidade para benefício próprio.

O tumulto, a aglomeração e a falta de empatia descritos por Trevisan ilustram essa superficialidade das interações humanas, que, segundo Bauman, caracterizam um tempo no qual as relações perdem estabilidade e profundidade, dando lugar a um vazio afetivo.

O individualismo exacerbado, outro aspecto central na crítica de Bauman, também é evidente no conto. A multidão, mesmo reunida em torno de Dario, não age como uma comunidade; cada indivíduo ali age isoladamente.

A presença do menino descalço com a vela — único gesto de humanidade em todo o relato — aparece como uma exceção em meio à frieza generalizada. É um contraponto singelo, quase insignificante diante do contexto maior, mas suficiente para demonstrar que a solidariedade se torna quase um ato de resistência.

A indiferença brutal que circunda Dario, culminando em sua morte anônima, ecoa a crítica de Bauman à sociedade ocidental, na qual o sofrimento alheio não provoca mais que um olhar fugaz. Ao expor essa desumanização, a literatura de Dalton Trevisan nos confronta com o desconforto de um mundo onde a empatia se esvai tão rapidamente quanto a chuva apaga a vela ao lado do corpo de Dario.

Literatura como lembrança de humanidade

Ao expor a indiferença humana com tanta contundência, Dalton Trevisan nos oferece um convite paradoxal: voltar a sentir. A literatura, ao revelar os aspectos sombrios de nossa sociedade, nos recorda da importância de olhar o outro, perceber o entorno e buscar gestos de humanidade.

Fico, portanto, com um sentimento de agradecimento e esperança com seu texto. Que a literatura siga nos mostrando o caminho para enxergar o outro, aquele que é meu igual na medida de sua desigualdade.

Foto de Larissa O’Hara

Larissa O’Hara

Graduada, mestra e doutora em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Possui especialização em Revisão de Texto e em Psicopedagogia. Trabalha como professora há mais de quinze anos, tendo atuado em diversas instituições. Já acompanhou o desenvolvimento de centenas de alunos em aulas ministradas em seu curso de redação. Publicou variados livros. Atualmente, é professora efetiva na rede estadual de ensino do Espírito Santo.