Chico Anysio e “O Menino”: uma reflexão sobre ser criança no Brasil

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Larissa O’Hara

Chico Anysio, um dos mais talentosos humoristas, atores e apresentadores do Brasil, também deixou sua marca na literatura. Entre seus escritos, destaca-se o conto “O Menino”, publicado em 1991 na coletânea “O Telefone Amarelo”.

Apesar de pouco conhecido, o conto oferece uma reflexão profunda sobre a condição infantil no Brasil e as desigualdades que a permeiam.

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A narrativa começa com a busca por um menino desaparecido, de apenas onze anos. Subnutrido e desamparado, ele não conta com suporte familiar ou institucional. Chico descreve a dura realidade desse menino com precisão dolorosa.

“Ele tem 11 anos, mas parece menos; pesa 30 quilos, mas parece menos; é brasileiro, mas parece menos”. Essa figura, em vez de ser individualizada, torna-se quase arquetípica, representando as muitas crianças esquecidas do Brasil: “É um menino normal, ou seja: subnutrido, desses milhares de meninos que não pediram pra nascer; ao contrário: nasceram pra pedir”.

Essa criança, silenciada e ignorada, simboliza a vulnerabilidade infantil no país. Chico capta sua essência ao afirmar: “Tímido até a ousadia, seus silêncios gritavam nos cantos da casa e seus prantos eram goteiras no telhado de sua alma”. Aqui, o autor não apenas narra a vida de uma criança, mas denuncia a condição de milhares de meninos e meninas negligenciados por uma sociedade que os ignora.

A narrativa culmina com uma revelação surpreendente: “Mas se alguém souber de alguma notícia, me procure, por favor, porque… ou eu encontro de novo esse menino que um dia eu fui, ou eu não sei o que vai ser de mim”.

Descobrimos, então, que Chico busca o menino que ele próprio foi, expondo como as marcas da infância moldaram sua identidade adulta. Essa introspecção pessoal dialoga com a dura realidade de inúmeras crianças brasileiras, igualmente desamparadas.

O conto revela um Brasil em descompasso entre os direitos assegurados às crianças e a realidade vivida por muitas delas. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227, estabelece que é dever da família, da sociedade e do Estado garantir, com prioridade absoluta, os direitos à vida, à saúde, à educação e à dignidade das crianças, protegendo-as de negligência, violência e opressão.

Da mesma forma, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) reforçam o compromisso de promover o pleno desenvolvimento das crianças e assegurar igualdade de oportunidades educacionais.

Entretanto, a figura do menino no conto evidencia que essas garantias nem sempre se traduzem na prática. Muitas infâncias permanecem à margem, sujeitas a privações que distorcem o direito de ser criança.

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No campo da educação infantil, debates sobre as concepções de criança e infância ganham destaque, influenciando políticas públicas e práticas pedagógicas. A visão da criança como sujeito de direitos reforça a importância de respeitar suas singularidades e atender às suas necessidades.

Anete Abramowicz, em “As múltiplas faces da educação infantil no Brasil” (2002), argumenta que não existe uma infância única, mas múltiplas infâncias, vividas de maneiras diversas, dependendo dos contextos sociais, econômicos e culturais.

Ao revisitar o menino que um dia foi, Chico Anysio convida à reflexão sobre essas múltiplas dimensões da infância. Seu conto ultrapassa o campo literário, servindo como ponto de partida para discussões sobre como a sociedade e demais instituições podem garantir que todas as crianças tenham suas existências acolhidas e suas experiências valorizadas.

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Larissa O’Hara

Graduada, mestra e doutora em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Possui especialização em Revisão de Texto e em Psicopedagogia. Trabalha como professora há mais de quinze anos, tendo atuado em diversas instituições. Já acompanhou o desenvolvimento de centenas de alunos em aulas ministradas em seu curso de redação. Publicou variados livros. Atualmente, é professora efetiva na rede estadual de ensino do Espírito Santo.