Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a investigação[1] de usuários que utilizaram VPNs para acessar a plataforma X (antigo Twitter) após sua suspensão no Brasil. A iniciativa, fundamentada em um pedido da Procuradoria-Geral da República, delega à Polícia Federal a tarefa de identificar e penalizar aqueles que fizeram “uso extremado” do X através de VPNs, dispositivos lícitos e amplamente utilizados no mundo inteiro para garantir a privacidade e a segurança na internet.

A carga de abstração presente no termo “uso extremado” e a generalização das sanções previstas na decisão que suspendeu a plataforma (penalidade de 50 mil reais aos usuários que acessarem o X) colocam em xeque princípios básicos do Estado de Direito.

O mero bloqueio de uma plataforma de comunicação tão significativa quanto o X já suscita preocupações relacionadas à prática de censura governamental e a limitação da liberdade de expressão dos milhares de indivíduos que acessavam a rede social. Contudo, a extensão das medidas para punir individualmente usuários que buscam alternativas para exercer seu direito à informação e à manifestação extrapola os limites da razoabilidade e da proporcionalidade.

O princípio da legalidade estabelece que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Ao aplicar sanções genéricas e abstratas a cidadãos que não estão diretamente envolvidos nas práticas supostamente ilícitas da plataforma, o supremo atua contrariamente à função que lhe é comumente atribuída de “guardião” da Constituição para, pelo contrário, atuar contrariamente a disposições constitucionais.

Ademais, a falta de clareza sobre quais condutas serão consideradas ilícitas e a desproporcionalidade das multas previstas criam um ambiente de insegurança jurídica e temor, propício a originar o chamado chilling effect[2]. A possibilidade de qualquer cidadão ser penalizado em valores exorbitantes por ações que não estão claramente tipificadas representa uma ameaça direta às liberdades individuais e ao devido processo legal.

A utilização de VPNs é uma prática comum e legítima, seja para proteger dados pessoais, preservar a privacidade do indivíduo, acessar conteúdos indisponíveis em determinadas regiões ou garantir a liberdade de expressão em ambientes restritivos. Criminalizar essa ferramenta, ainda mais sem uma fundamentação jurídica sólida, é um passo perigoso rumo ao cerceamento de liberdades essenciais ao indivíduo.

A postura do STF levanta preocupações sobre um potencial excesso de poder e uma inclinação autoritária. A centralização de funções de investigador, acusador e juiz em uma única autoridade desafia os princípios da separação dos poderes e do contraditório, pilares essenciais de uma sociedade verdadeiramente livre.

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), manifestou-se contra as multas impostas, apontando diversas violações a preceitos fundamentais. Essa reação indica o grau de inquietação que tais decisões têm provocado em setores importantes da sociedade.

As instituições brasileiras devem atuar dentro dos limites constitucionais e em respeito às liberdades individuais. A luta contra a desinformação e as práticas de discurso de ódio não pode servir de fundamentam para a implementação de medidas autoritárias que fragilizam a liberdade do indivíduo. A história nos mostra que o caminho para o totalitarismo é pavimentado por pequenas concessões de liberdade em nome de um bem maior.

Em um mundo cada vez mais conectado, a liberdade digital é uma extensão das liberdades civis. Proteger o direito de acesso à informação e de livre manifestação na internet é essencial para a manutenção de uma sociedade aberta e plural.

Nesse contexto, para a preservação das liberdades individuais no futuro da internet, o Supremo deve exercer o papel de “guardião” e não de “senhor” da Constituição e das liberdades nela previstas.

[1] https://www.estadao.com.br/opiniao/uma-suprema-corte-kafkiana/.

[2] O chilling effect refere-se à autocensura que um indivíduo se impõe, motivada pelo medo de represálias legais, sociais ou econômicas. Esse fenômeno mina a liberdade de expressão e impede que uma sociedade seja considerada verdadeiramente livre.

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