Comerciantes, funcionários, idosos, crianças e mães. A enchente que há um ano devastou a cidade de Mimoso do Sul não poupou ninguém. Todo morador, direta ou indiretamente, sofreu e ainda sofre com as marcas do desastre da madrugada de 23 de março.
No município do sul do Espírito Santo, as fortes chuvas daquela data deixaram cerca de 13,2 mil pessoas desalojadas e outras 100 desabrigadas*. Também devido à enchente, 18 pessoas morreram e uma segue desaparecida até hoje.
Doze meses após a tragédia, a cidade parece, em um primeiro momento, estar reconstruída: os comércios estão de portas abertas, crianças voltam para suas casas de uniforme escolar, os órgãos municipais funcionam normalmente e as pessoas ocupam mesinhas na praça.
Mas com um olhar mais atento ainda é possível ver os estragos. A água com lama deixou marcas nas paredes das casas e alguns pontos comerciais deixaram de existir.
Em todo canto, a população relata que, apesar de seguir a vida, “nada volta a ser como antes”.
Agora a gente vive com medo e toda vez que chove, a gente se desespera. Olhamos para o céu com medo da chuva. Eu espero que igual a essa nunca mais tenha igual. Foi terrível.
O relato é da jovem Noelle Vitória, de 21 anos, que trabalha em uma loja de variedades que, à época, ficou debaixo d’água. Foi necessário um mês de limpeza, retirada de lixo e entulho e muita ajuda para contabilizar as perdas e retomar o funcionamento do comércio.
“Agora nós deixamos as estantes debaixo vazias, porque temos medo da água entrar de novo e levar tudo embora”, contou a funcionária.
Naquela madrugada, o estabelecimento e mais cinco depósitos de estoque foram tomados pela enchente. A dona Marinês Mofati, de 60 anos, relata que o prejuízo foi de mais de R$ 1 milhão. “Nem em 10 anos vamos recuperar”.
“Está difícil, mas a gente está lutando. Depois de julho (de 2024), as coisas melhoraram, mas as vendas ainda não voltaram a ser como antes. Muito comércio fechou e muita gente foi embora porque não tem onde trabalhar”.
Apesar do trauma, as trabalhadoras continuam lutando, entre memórias e mudanças, pela reconstrução da cidade.
“A gente vai voltando aos poucos, mesmo com as lembranças. Todo mundo tem um pouquinho da enchente e das pessoas que faleceram, porque em cidade pequena todo mundo se conhece. Mas estamos voltando”, relata Noelle.
Já Marinês, que viu a própria casa inundar até o segundo andar e os filhos perderem todos os equipamentos dos consultórios médicos, se diz animada apesar das dificuldades e do medo.
“No dia eu pensei assim: ‘vai morrer todo mundo’. Mas hoje eu estou bem, animada para trabalhar. Meus filhos, que assim como eu perderam tudo, também compraram tudo de novo e estão voltando a trabalhar”.
Mesmo com a necessidade de reconstruir a vida e os negócios, a proprietária não pensa em sair da cidade nem em deixar o estabelecimento, onde trabalha há 30 anos.
Ao contrário dela, Patrícia dos Santos, de 46 anos, dona de uma loja de lingerie, tem vontade de ir embora. “É o meu sonho, mas é muito difícil”.
Acostumada com outras enchentes na cidade, Patrícia viu a chuva começar e a água subir com uma velocidade jamais vista antes. Até hoje, as paredes da loja guardam umidade e, por isso, a pintura nova sempre estraga.
Morando em cima do estabelecimento comercial, que fica ao lado da ponte sobre o Rio Muqui do Sul – que corta a cidade de um extremo a outro -, Patrícia tentou salvar parte da mercadoria antes de subir para sua casa.
No entanto, em poucos minutos a água já tomava conta das ruas e ela não conseguia achar uma rota de saída. Foi o marido que, “com a água já acima do peito”, voltou para salvá-la.
“Eu tirei muita coisa, mas não imaginava que a água ia subir tanto. Foi tudo muito rápido e desesperador, principalmente para nós que moramos ao lado do rio”.
Os momentos que se seguiram foram de muita tensão. Patrícia, o marido e a filha foram para o andar de cima e, de lá, escutaram a água arrastar carros, entrar nas casas vizinhas e levar até pessoas.
“Eu ouvia muitos gritos, pedidos de socorro, mas não conseguia fazer nada. Só conseguimos salvar um vizinho e um inquilino que estava preso dentro de casa e não conseguia sair”.
Emocionada, a comerciante conta que o momento “surreal” deixou marcas na vida dela e de conhecidos.
Todo mundo ficou com trauma. Hoje, qualquer chuvinha que dá, a gente já fica atordoado, com medo, toda hora olhando para o céu. Se está muito escuro, já dá medo da água transbordar de novo.
Além do medo, há outro sentimento que surgiu um ano após a tragédia. Mesmo com pouco movimento no comércio, Patrícia celebra a vida e agradece por estar reconstruindo a vida com a família.
“Eu tenho muita gratidão, porque não é fácil você ver sua filha chorando, rezando no cantinho com medo… Mas graças a Deus estamos vivos e por isso há o sentimento de gratidão, por termos sobrevivido a toda aquela água”.
As cenas de terror vistas após o desastre de Mimoso do Sul também deram lugar a novos espaços, pinturas e construções.
No ponto onde havia um açougue, hoje há um restaurante. Há um ano, as carnes foram carregadas pela água e, dias após a enchente, ainda espalhavam um mau cheiro pela cidade.
Agora, o aroma é outro: de comida fresca e saborosa. Mas, mesmo neste novo cenário, as memórias da tragédia estão vivas.
A funcionária Gabriela dos Santos, conhecida como Bia, de 36 anos, conta que estava trabalhando quando começou a chover.
“Foi uma madrugada intensa e só escutávamos os gritos. Até hoje tem muitas pessoas que não se recuperaram, principalmente psicologicamente, porque a nossa cidade quase foi varrida do mapa”.
Se após o desastre Bia fosse questionada sobre a reconstrução de Mimoso, ela não demonstraria esperança ou otimismo. O recomeço parecia inimaginável, porque “tudo estava destruído”.
A funcionária viu o antigo local de trabalho ser devastado pela água, e os patrões – a família Gomes Castro -, perderem tudo. Foram as doações recebidas e a ajuda de voluntários que começaram a tornar o sonho de se reerguer possível.
Vizinhos ajudaram uns aos outros, pessoas abrigaram desconhecidos e, do desespero, novas amizades e laços surgiram.
“Começamos a nos reerguer do zero. Todo mundo se uniu, acolheu os outros. Acho que todo mundo ficou mais humano após a tragédia”, afirma Bia.
Apesar da aparente recuperação do município, hoje limpo e com a maior parte dos edifícios restaurados, um ano depois da enchente Bia diz que a comunidade “ainda não se curou”.
Ela, assim como os demais moradores reforça: “Quando tem previsão de chuva, a cidade inteira já fica em alerta. A gente não consegue nem dormir”.
Mesmo assim, ela ressalta o orgulho que sente em ver a evolução da cidade e agradece por continuar vivendo em Mimoso do Sul.
Isto, quando se observa a cidade com calma, é o que se vê: uma população que, apesar da saudade que os falecidos e antigos pontos deixaram, segue trabalhando para que o dia a dia volte a ser, ao menos, parecido com o que era antes.
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*Desalojadas são as pessoas que saem de suas próprias casas e se deslocam para outras residências de conhecidos. Já os desabrigados precisam deixar suas casas e não têm para onde ir.