No Brasil, cerca de 460 crianças nascem diariamente sem a identificação do pai na certidão de nascimento, segundo dados da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen). São crianças que, muitas vezes, se tornam adultas sem conhecer a figura paterna.
Não só o abalo psicológico por não ter pai presente, mas as questões legais também afetam uma família. A criança sem o registro legal do pai não tem acesso à pensão, quando necessária, tampouco é considerada para herança da família paterna.
No Espírito Santo, durante o primeiro semestre de 2024, foram cerca de 3 mil bebês que nasceram sem o registro do pai no documento.
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A capixaba Raquel Rodrigues decidiu entrar na Justiça quando completou 18 anos após passar a infância tentando ter uma relação de afeto com o pai. Criada pelos avós e pela mãe, ela começou a se interessar em conhecer o pai na adolescência, mas, quando o encontro aconteceu, ele já tinha outra família, o que dificultou a aproximação.
“Eu não fui bem recebida por ele e comecei a me distanciar. Falei com minha mãe para entrarmos na Justiça para termos uma melhor condição de vida, mas ela não quis levar adiante. Eu disse que quando eu completasse 18 anos eu ia fazer o processo para ter o nome dele no meu documento”, disse.
Atualmente, Raquel é casada e tem duas filhas. Ela afirma que o marido é para suas filhas o pai que ela mesma nunca teve. Mesmo com a decepção de não ter sido bem acolhida pelo pai, ela ainda tem esperança no reencontro. “A minha esperança é que ele viesse até mim, que se reconheça como meu pai e peça desculpas”, finalizou.
Momentos dolorosos na infância por ausência do pai
Crescer com a ausência do pai também foi o caso da Emiliana Barboza, assistente administrativa. Ela relembra dolorosamente de momentos da infância em que não sabia como lidar com a falta do pai.
“Eu cresci sabendo da existência de um pai, que optou por não estar presente na minha vida. Teve um episódio que liguei para ele, quando eu era criança. Ele atendeu e, quando soube que era eu, passou o telefone para outra pessoa. Uma vez, era Dia dos Pais e eu estava na escola, a professora passou de mesa em mesa perguntando aos alunos qual era a profissão do pai. Quando chegou na minha, eu só soube chorar”, contou.
Emiliana está no processo de inserir o nome do pai nos documentos, por meio do projeto Papel de Pai, do curso de direito da Faesa. De forma gratuita, o projeto fornece assistência e realiza o processo junto da Justiça para moradores de Vitória.
“Eu sempre fui muito bem acolhida pela família da minha mãe, mas não ter contato com o meu pai incomoda. Eu sei que tenho três irmãs por parte dele, que eu nunca conheci. Meu desejo é ter contato com a família dele, estou esperançosa”, completou.
Dos sentimentos aos direitos: como inserir o nome do pai no documento
Para os moradores de Vitória, o projeto Papel de Pai é ofertado pelo Núcleo de Prática Jurídica (NPJ) da Faesa e possibilita para dezenas de pessoas a inserção do nome do pai no documento, por meio de processos judiciais.
O projeto nasceu em 2013 com o nome Meu Pai é Legal, em parceria com o Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES). Em 2022, porém, a Faesa trouxe o projeto para dentro da faculdade para ser desenvolvido de forma independente do Poder Judiciário. Agora, os dois projetos existem e ambas as instituições dão apoio uma para a outra.
Segundo o professor de Direito e coordenador do projeto, Flávio Barroca, em dois anos de projeto foram feitos 140 atendimentos. Apesar do projeto funcionar de forma constante, todos os anos é organizado um evento para divulgação dessa iniciativa.
“Se a gente for contabilizar desde 2013, são mais 1,2 mil atendimentos e temos cerca de 140 desde 2022. Uma vez por ano, realizamos uma ação de divulgação, atendendo famílias e cadastrando para partir a próxima etapa. Mas nosso grupo é permanente basta procurar quem tiver interesse de colocar o nome do pai do documento”, explicou.
A próxima etapa que o professor menciona é quando a Faesa entra em contato com os supostos pais indicados pelas mães e familiares, para informá-los da situação. Caso o pai reconheça a paternidade voluntariamente, a família é encaminhada para realizar o registro de uma nova certidão em cartório, gratuitamente.
Se não houver um acordo amigável, o NPJ entra com ação de reconhecimento de paternidade junto ao Poder Judiciário.
Projeto também busca formação humanizada para os universitários
Além de proporcionar mudança na vida de pessoas que buscam seus direitos, o projeto também fornece aos universitários uma formação mais humanizada. Estudantes do curso de Direito da Faesa podem participar a partir do segundo período.
Hoje, assessor judiciário do TJES, Vitor Passos participou do projeto e conta que a experiência foi recheada de histórias emocionantes que mudaram sua perspectiva sobre a área.
“Participei mais na parte do atendimento, da devolutiva e da procura do indicado como pai. Todas as histórias são intensas. Eu acho muito bonito a pessoa entender que é um vínculo afetivo, de amor, mas também é um vínculo legal e jurídico”, disse.
Vinícius Henrique cursa o terceiro período de Direito da Faesa e, atualmente, participa do projeto Papel de Pai. Na experiência do universitário, o projeto ajuda na formação mais humanizada dos alunos.
“As pessoas acham que o curso de Direito é um curso frio, ligado somente às normas jurídicas, sem contato social. Mas esse projeto é cheio de histórias comoventes de famílias que querem ser estruturadas. É uma sensação de alívio saber que você pode ajudar uma família. A Faesa traz diversos meios e práticas sociais e agrega na nossa formação social. É um papel importante para a nossa profissão”, compartilhou.
O Núcleo de Prática Jurídica (NPJ) está localizado Avenida Vitória, nº 2220. Funciona de segunda a sexta-feira, de 8h as 21h. Quem tiver interesse, pode entrar em contato pelo e-mail [email protected] ou pelo telefone (27) 2122-4133.
Há também a possibilidade de ir diretamente ao TJES e aderir ao programa Meu Pai é Legal, que realiza o trabalho de reconhecimento de paternidade. Mais informações podem ser conferidas no site do Tribunal.