Como a Justiça trata os casos de compra emocional?

Alex Pandini

Adobestock.

Dando continuidade ao tema “compra emocional”, apresentamos nesta sexta-feira (18/10), a segunda parte da análise do advogado Eduardo Sarlo, especialista em Direito Público e Civil. O tema, da maneira como apresentado pelo especialista, nos pareceu oportuno, didático e, de forma resumida, muito elucidativo. Por isso, ganha espaço ampliado no blog. Ontem, foram abordados principalmente os aspectos legais que amarram os contratos, e os riscos aos quais o comprador deve se atentar. Agora, Sarlo traz, para além do regramento legal, a leitura que a Justiça tem feito da legislação e de determinados casos, no papel que a ela cabe de equilibrar as relações sociais e comerciais.

 

 

Avaliando os argumentos, o advogado destaca que a jurisprudência brasileira, em geral, tem favorecido a restituição parcial dos valores pagos em caso de desistência, “desde que seja garantido um percentual razoável para cobrir os custos administrativos. Tribunais têm considerado que multas excessivas ou retenção de grande parte dos valores são abusivas, com devoluções que variam entre 70% e 90% do montante pago ao comprador. Cada caso dependerá das cláusulas contratuais, do comportamento das partes e da avaliação do juiz sobre a proporcionalidade e a boa-fé na execução do contrato”, diz. Abaixo, segue a análise sobre a visão dos juristas e tribunais sobre os casos concretos.

 

 

Quais os principais argumentos usados pela defesa para justificar a retenção dos valores pagos?

A Justiça brasileira define o limite de retenção de valores em casos de rescisão de contrato de compra e venda de imóveis com base em uma série de princípios e parâmetros que visam garantir o equilíbrio entre as partes. O objetivo é evitar o enriquecimento sem causa de uma parte e assegurar que a retenção de valores seja justa e proporcional aos custos efetivamente suportados pela incorporadora ou vendedora. Aqui estão os principais critérios e entendimentos utilizados pela Justiça para definir esse limite:

 

1. Princípio da Proporcionalidade e Razoabilidade

Os tribunais utilizam o princípio da proporcionalidade para assegurar que a retenção de valores não seja excessiva ou abusiva. A retenção deve ser limitada aos custos que a empresa realmente teve com a operação e não pode gerar vantagem indevida.

 

•Exemplo: A empresa pode reter valores relacionados às despesas administrativas, comissões de venda e outras despesas efetivamente incorridas, mas não pode reter todo o valor pago sob o argumento de que houve perda de oportunidade de venda ou outros prejuízos abstratos.

 

2. Código de Defesa do Consumidor (CDC)

O Código de Defesa do Consumidor (CDC) estabelece que, em casos de rescisão contratual, o consumidor tem direito à devolução de parte substancial dos valores pagos, salvo os custos administrativos e outras despesas comprovadas pela empresa. O CDC protege o consumidor contra cláusulas abusivas e práticas que imponham desvantagem excessiva em favor da incorporadora.

 

•Exemplo: Cláusulas que prevejam retenção de valores superiores a 50% dos montantes pagos são frequentemente consideradas abusivas pelos tribunais.

 

 

3. Súmula 543 do STJ

A Súmula 543 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabelece um entendimento consolidado sobre a retenção de valores em casos de rescisão contratual, determinando que:

 

 

•Na rescisão por culpa do comprador (como desistência voluntária), a restituição das quantias pagas deve ser integral, com retenção de um percentual razoável para cobrir os custos da empresa.

Geralmente, a jurisprudência permite retenções de até 20% a 30% do valor pago.

 

 

•Na rescisão por culpa da incorporadora (atraso na entrega ou descumprimento contratual), a restituição dos valores pagos pelo consumidor deve ser integral, sem retenção.

A súmula se aplica tanto a imóveis adquiridos na planta quanto àqueles prontos para morar, desde que o consumidor tenha desistido da compra de maneira voluntária.

Eduardo Sarlo, advogado especializado em Direito Público e Civil. Foto divulgação.

4. Limite de Retenção de Até 30%

Com base no entendimento da Súmula 543 do STJ e em decisões reiteradas dos tribunais, a Justiça tem estabelecido que a retenção máxima de valores em caso de rescisão contratual por desistência do comprador deve ficar em torno de 20% a 30% do valor total pago. Esse percentual visa cobrir os custos administrativos e as despesas com marketing e comissões.

 

•Exemplo: Se o consumidor pagou R$ 100.000 ao longo do contrato e decide rescindir o contrato, a empresa pode reter até R$ 30.000, devolvendo R$ 70.000 ao comprador.

 

5. Proibição de Cláusulas Abusivas

A Justiça frequentemente invalida cláusulas contratuais que estipulam retenções muito elevadas ou que impõem multas desproporcionais em caso de desistência do comprador. De acordo com o CDC, cláusulas que colocam o consumidor em desvantagem exagerada são consideradas nulas de pleno direito.

 

•Exemplo: Se o contrato prevê a retenção de 50% ou mais dos valores pagos, essa cláusula é geralmente considerada abusiva e será reduzida pelo juiz para um percentual mais razoável.

 

6. Consideração dos Custos Efetivamente Suportados

A Justiça também avalia se a retenção dos valores está ligada a custos efetivamente suportados pela empresa. Isso inclui despesas com comissões de corretores, campanhas de marketing, preparação de documentação e outras atividades administrativas. No entanto, a incorporadora precisa demonstrar a existência desses custos.

 

•Exemplo: Se a empresa não conseguir comprovar que teve despesas com a venda do imóvel, o juiz pode reduzir o percentual de retenção.

7. Rescisão Imotivada ou Voluntária

 

Quando a rescisão ocorre por vontade do comprador, sem culpa da incorporadora ou vendedora, a Justiça tende a permitir a retenção de uma parte dos valores pagos para compensar os custos incorridos pela empresa, desde que essa retenção seja proporcional e não abusiva.

 

•Exemplo: O comprador desiste da compra por mudança de planos. Nesse caso, a empresa pode reter parte dos valores pagos para cobrir suas despesas, mas deve devolver a maior parte ao comprador.

 

8. Rescisão por Inadimplemento ou Culpa da Incorporadora

Se a rescisão for motivada por inadimplemento da incorporadora, como atraso na entrega do imóvel ou descumprimento de cláusulas contratuais, a Justiça costuma determinar a devolução integral dos valores pagos pelo comprador, sem qualquer retenção.

 

•Exemplo: Se a incorporadora atrasa a entrega do imóvel além do prazo previsto no contrato, o comprador pode rescindir o contrato e receber todos os valores de volta.

 

9. Devolução Parcelada

Outro ponto que pode ser discutido na Justiça é a devolução dos valores de forma parcelada. Algumas incorporadoras tentam parcelar a devolução do dinheiro, mas a jurisprudência atual do STJ geralmente exige que a devolução seja feita em uma única parcela, especialmente se o consumidor pagou os valores de maneira integral.

 

Resumo dos Critérios:

•Rescisão por desistência do comprador: Retenção de 20% a 30% do valor pago.

•Rescisão por culpa da incorporadora: Devolução integral.

•Cláusulas abusivas: São consideradas nulas, e o juiz pode reduzi-las.

•Custos efetivos: A retenção deve se basear em custos comprovados, como comissões e despesas administrativas.

•Jurisprudência consolidada: A Súmula 543 do STJ é amplamente aplicada para determinar limites justos de retenção e devolução.

Em todos os casos, o entendimento judicial visa equilibrar os interesses das partes, garantindo que a rescisão seja justa e respeite os direitos do consumidor sem causar prejuízos desproporcionais à incorporadora.

 

(continua na segunda-feira)

 

Eduardo Sarlo é advogado especializado em Direito Público e Civil

Foto de Alex Pandini

Alex Pandini

Alex Pandini é jornalista, tem 53 anos e mais de 3 décadas de experiência profissional em rádio, jornal, TV, assessoria de imprensa, publicidade e propaganda e marketing político. Além de repórter e apresentador na TV Vitória, é responsável pelo conteúdo da plataforma ConstróiES.