instagram facebook twitter youtube whatsapp email linkedin Abrir

Faz a Conta

por Tamires Endringer

Colunistas-FBPrancheta-5-12.png

Passeio para comprar livros?

O varejo de livros com lojas físicas, vem sobrevivendo com ajuda de “aparelhos respiratórios”, mas não vai durar muito tempo. Não adianta. O canal de vendas mudou (boa parte das vendas de livros são feitas por e-commerce), os hábitos de consumo mudaram (kindle, e-books, áudio-books, podcasts), as fontes de informação mudaram (autores independentes, editoras pequenas, impressões on-demand, vídeos do Youtube, documentários do Netflix e outros streamings). As editoras (que recebem em média 30% do valor de um livro) também vêm sofrendo, e, quando o modelo da simples leitura (ultrapassadíssimo na minha opinião) mudar para experimentação prática e realidade aumentada (comprovadamente incrementando a retenção de informações), o impacto será ainda maior. As editoras estão se preparando?

Laselva, Saraiva, Cultura... indícios do fim de um modelo de negócios?

  A primeira livraria do Brasil data de 1792 (Paul Martim), 203 anos depois o primeiro e-commerce de livros do Brasil foi fundado (Booknet em 1995), comprado pelo Submarino em 1999. 15 anos depois o mercado de varejo físico de livros começou a declinar. Fato consumado. As pessoas continuam lendo livros. Em 2020 os brasileiros compraram R$2,1 bilhões em livros. O canal mudou. Uma fração considerável das livrarias físicas não conseguiu se adaptar, e está saindo de cena. Tal fato acontece em diversos setores, em empresas que falham em perceber mudanças de hábitos de consumo que afetam diretamente seus negócios. Uma pena. A Laselva, que foi uma das maiores do Brasil (chegou a ter 80 lojas, com foco em pontos físicos em aeroportos), após não cumprir com seu Plano de Recuperação Judicial (“RJ”), protocolado em 2013, não demonstrando viabilidade econômico-financeira e tampouco social, teve em 2018 sua falência decretada. Cinco anos se passaram, entre o pedido de RJ e a falência da empresa, cujos credores amargaram perdas de cerca de R$ 160 milhões (a massa falia tem valor irrisório). De lá pra tivemos mais de mil livrarias fechadas no Brasil, e casos emblemáticos como Livraria Cultura e Saraiva, em RJs que se estendem desde 2018. Nos casos da Cultura e Saraiva, os erros que levaram a este estado pré-falimentar são parecidos, com mais ou menos ponderação para alguns dos seguintes fatores: (i) uso de caixa com abertura/ manutenção de grandes pontos comerciais; (ii) autocanibalização causado por suas próprias lojas virtuais; (iii) precificação agressiva da Amazon (compra lotes com desconto ao invés de consignação) e outros marketplaces; (iv) canal digital pouco explorado, (v) mix de produtos eletrônicos competindo com e-commerce (melhores preços online), (vi) insistência num modelo defasado. A Saraiva (SLED4), cujas ações foram de R$ 44,0/ação em dez/2010 para atuais (22/10/21) R$ 0,3/ação (valor de mercado de R$ 26 milhões), possui dívida na RJ de R$ 330 milhões (50% bancos - destes 85% Banco do Brasil - e 50% fornecedores) e dívida fora da RJ de R$ 160 milhões. Operacionalmente, a empresa não para de pé faz tempo. O último EBITDA positivo foi em 2017 (R$42 milhões) sendo negativo desde então, R$ 97 milhões em 2020, R$ 177 milhões em 2019 e em R$ 130 milhões em 2018. O Plano de RJ aprovado em fevereiro/21 prevê pagamentos com até 80% de haircut – deságio no valor da dívida - e alguns credores recebendo até 2048. Segundo o último relatório do administrador judicial (do administrador judicial RV3, apresentado em outubro com informações acumuladas até agosto/21), a empresa teve receita liquida de R$7,3 milhões por mês em 2021, queda de 70% comparada ao mesmo período de 2020, sendo 85% de 38 lojas ativas e 15% via e-commerce, e EBITDA negativo de R$26,8 milhões acumulado até agosto de 2021 (EBITDA negativo acumulado de R$246,7 milhões nos últimos 12 meses). Eu me questiono o motivo pelo qual o e-commerce ainda permanece tão incipiente nas vendas da empresa, com manutenção do modelo físico como principal fonte de receita, carregando toda a estrutura inerente ao negócio físico. Nota-se um declínio de 86% da receita de e-commerce de 1S2020 para 1S2021, sem maiores explicações da gestão (dados do relatório da administração). A Saraiva conta com algumas UPIs (Unidades Produtivas Isoladas – ativos que poderiam ser vendidos livres de riscos de sucessão) que foram a leilão em setembro/2021, a saber, algumas lojas físicas (com valor mínimo de R$ 113 milhões) e unidade de comércio eletrônico (valor mínimo de R$90 milhões). Não houve a habilitação de interessados para a aquisição das referidas UPIs no leilão, impossibilitado o cumprimento das obrigações contidas no Primeiro Aditamento ao PRJ. A informa que irá apresentar um Segundo Aditamento ao PRJ, que deverá ser aprovado por nova à Assembleia Geral de Credores. Ou seja, o processo se estenderá por mais tempo. A Cultura (empresa privada da família Herz) enfrenta dificuldade desde 2014 (receita caiu de R$ 427 milhões naquele ano para R$ 270 milhões em 2018). Em 2017 recebeu R$ 130 milhões para assumir a Fnac (para logo depois fechar todas as unidades e a loja virtual). Em 2018 pediu RJ (R$ 285 milhões, sendo 75% das dívidas com fornecedores, o que torna a situação mais delicada ainda do que a Saraiva). Em 2020 vendeu a Estante Virtual por R$31 milhões para a Magalu (parte dos recursos para pagar credores). Em maio de 2021 teve novo Plano de RJ (“PRJ”) aprovado (até 80% de haircut e alguns credores recebendo até 2040), evitando pedidos de falências. Apesar dos problemas já virem há 7 anos, parte da “culpa” (e motivo pra novo Plano de RJ), assim como na Saraiva, foi atribuída ao fechamento de lojas durante a pandemia (segundo a gestão, parte da renda vinha de noites de autógrafos). A empresa possui hoje 7 lojas físicas, o quadro de colaboradores foi reduzido de 929 em 2018 para 195 em junho 2021 (reduzindo também o apelo da contribuição do negócio como fim social). Segundo o último relatório disponível do Administrador Judicial (A&M, com data de setembro/21 e dados de junho/2021), a empresa teve receita líquida média de R$ 2,6 milhões por mês em 2021 (91% livros/ 37% e-commerce), 56% menor que o mesmo período de 2020, e apresentou resultado operacional negativo de R$ 24,8 milhões, acumulado no primeiro semestre de 2021. Interessante observar que quase 50% das saídas de caixa são representadas pela folha de pagamentos. Não seria uma opção, talvez, fechar todas as lojas (stop-loss imediato), reduzir o pessoal ao mínimo, e focar 100% nas vendas online? O déficit de caixa está sendo coberto com dívidas extraconcursais (obrigações contraídas depois do pedido de RJ), que em teoria (existem particularidades) têm prioridade no recebimento no caso de falência. O passivo extraconcursal operacional já soma R$ 58,5 milhões e o financeiro (sem considerar partes relacionadas) R$ 49,6 milhões. Se considerarmos que os ativos totais da empresa, descontando os impostos a recuperar, o valor do ativo mal cobre o passivo extraconcursal. Ou seja, se a Cultura falir, os únicos que têm alguma chance de recuperar parte dos seus recursos são os credores que emprestaram recursos após a RJ (e nem estou considerando o tempo para o processo se desenrolar, os diretos legais de preferência nos recebimentos, a qualidade dos ativos, e o deságio dos ativos na venda em liquidação, estou partindo simplesmente do valor contábil pra facilitar a conta). Não é à toa que os credores concursais de ambas Saraiva e Cultura aprovaram as alterações nos Planos de RJ. A melhor estratégia para tais credores é contar com o recurso das vendas das UPIs (no caso da Cultura parece-me que o que ficou de valor se restringe à marca), que seriam usadas para seu pagamento, e aprovar qualquer tipo de prolongamento (10 anos ou 100 anos, nestes casos, não farão diferença alguma). Na Cultura, agora é observar se existirão financiadores dispostos a continuar aportando recursos na empresa, dado que o cenário de liquidação aponta para incapacidade adicional de qualquer tipo de alavancagem, e quanto tempo a empresa tem de fôlego para cobrir o furo de caixa, que soma R$6,0 mm/mês. A empresa tinha em junho/21, entre caixa, contas a receber e estoque o valor de R$ 12,3 milhões. Na Saraiva, verificar qual será a proposta contida no Segundo Aditamento ao PRJ e se os credores aprovarão o mesmo (provavelmente sim), entender se existe ainda possibilidade (ou compradores por novo valor mais baixo) de venda das UPIs, e se o plano de ação divulgado pela gestão será executado (soluções parecem muito óbvias para ainda não terem sido implementadas), revertendo a geração negativa de caixa que vem ocorrendo há 4 anos. A presente análise foi realizada com informações disponíveis publicamente, sendo que uma avaliação bem mais aprofundada se faz necessária a credores e acionistas de ambas as empresas, afim de tomada de decisões sobre a continuidade dos negócios. Por Estevão Seccatto Rocha Estevão Seccatto Rocha é professor de Turnaround na FIA Business School. Engenheiro naval (Poli/USP), extensão em economia (Harvard), finanças e marketing (FEA/USP), tecnologia (Singularty University), mestrando (University of Liverpool). Foi head global de M&A da Atento (NYSE), reestruturador de empresas pela KPMG e IVIX, diretor da G4S (LSE) e associado no private equity Artesia. Colunista da Agência Estado, conselheiro de administração pelo IBGC. Assessorou mais de uma centena de empresas. www.seccatto.com