Madrugada de sábado, 29 de abril, Iriri, litoral sul do Espírito Santo. Chuva fina, frio e temperatura de 22º graus. Um abraço coletivo, uma oração e uma palavra: emoção. Nos olhos de Elcio Alvares Neto uma lágrima parecia querer cair. Na minha garganta, um nó. “Dois minutos para a largada. Posicionem-se!”, gritou o idealizador e organizador do Desafio Vitória Anchieta, Alen Brandizzi.
“Não é desafio se você sabe que vai conseguir” – O tom da convocação me fez lembrar essa frase dita por Elcio em algum de nossos treinos juntos. E ali, embaixo do pórtico, nos segundos da contagem regressiva, não havia certeza alguma. As pernas pesavam em dúvidas e dores. Trinta dias antes, o atleta correu uma ultramaratona de 600km em 10 dias, na Costa do Dendê, na Bahia. Na segunda-feira da mesma semana do Vitória Anchieta, na ladeira da Penitência do Convento da Penha, ele percorreu, por 12 horas, os 450 metros íngremes em agradecimento à Nossa Senhora da Penha, padroeira do Espírito Santo, por suas conquistas no esporte.
Às 4h02, foi dada a primeira largada do Desafio Vitória Anchieta para Elcio Alvares Neto e outros três ultramaratonistas da categoria solo 110km. Entrei no carro de apoio, que seria pilotado ao longo do percurso até Vitória pelos amigos Felipe Ribeiro e Alessandro Araújo. A velocidade não ultrapassaria os 10km/h. No porta-malas, toda a hidratação e alimentação que seria consumida pelo atleta: gel de carboidrato, barras de proteína, suplementos, isotônicos, sucos, refrigerantes, pães, biscoitos e frutas.
Em único pelotão, os quatro começaram a correr em um pace confortável. Eu estava tensa dentro do carro. Aceitei o desafio de acompanhar Elcio durante toda a prova e não tinha certeza se conseguiria relatar essa experiência com palavras.
A primeira hora do Desafio Vitória Anchieta foi debaixo de muita chuva. Os corredores, ainda juntos, percorreram cerca de 6km até chegarem nas proximidades do Santuário Nacional São José de Anchieta. Ali, Elcio decidiu fazer uma breve parada e deixar os demais atletas seguirem: “Estou indo no pace deles e isso pode me quebrar. A partir de agora, vou seguir sozinho”, disse enquanto abria um isotônico e se protegia do frio atrás do carro de apoio.
5h40. 10km percorridos em 1h40. O dia começa a amanhecer e o ultramaratonista não consegue desenvolver um ritmo frequente de corrida. Caminha por longos trechos e sente bastante as pernas. “A cada 3km, preciso que vocês me deem água ou isotônico para beber”, solicitou. Segundo Elcio, em tempo frio, é comum os atletas deixarem de lado a hidratação porque não sentem tanta sede. Um erro que pode levar à desidratação e acabar com a prova.
Sorrisos no caminho – Mesmo sem conseguir desenvolver um bom ritmo de corrida, o clima entre o corredor e a equipe era de entusiasmo. Estávamos felizes. Assim como os dois cães que encontramos no início do caminho. O primeiro, que vou apelidar de “Branco”, se aproximou do nosso carro assim que dei um sorriso pra ele. “Felipe, pare o carro um pouquinho pra eu fazer uma foto?”. O meu pedido foi atendido e, enquanto ajustava o foco na direção de Branco abanando o rabinho, a “Caramelo” me surpreendeu do outro lado. Com uma doçura no olhar, ela se aproximou como se quisesse dizer: “também vou sair nessa foto”! Registrei a alegria e a recepção dos dois e partimos.
Companhia na caminhada – Ao completar duas horas de prova, chegamos à Praia dos Castelhanos, ainda em Anchieta, onde a chuva deu uma trégua e Elcio disse que precisava caminhar por 5km. Alessandro desembarcou do carro para fazer companhia a ele. Chegamos em Ubu, por volta das 6h30, sem chuvas. Às 7 horas, volta a chover e Elcio decidiu voltar a correr mais firme. Fez sua primeira alimentação sólida quando atingiu a marca de 21km percorridos: pão, queijo e peito de peru. O relógio marcava 8 horas quando chegamos à Bacutia, em Guarapari. A partir dali, passamos por diversas praias da Cidade Saúde debaixo de chuva fina.
Quando chegamos à Praia dos Namorados, decidi sair do carro e caminhar ao lado de Elcio. Ao ouvi-lo reclamando das dores nas pernas, sugeri que ele tomasse um analgésico do kit de Primeiros Socorros. “Ainda não está na hora”, disse.
Enquanto caminhávamos, eu afinava os detalhes do nosso almoço em Setiba. A previsão era de chegar ao Quiosque do Kibe, em Setibinha, até o meio-dia, onde um banquete preparado pelo chef Same Mattar, cunhado de Elcio, nos aguardava. Ainda tínhamos um longo caminho a percorrer, mas eu e a equipe já pensávamos no almoço.
Quando alcançamos a Praia do Morro, disse para ele que estava com vontade de correr. Seguimos em um trote leve pela areia onde Elcio realiza, há três anos, o Desafio Solidário Noturno – Correndo por Alimentos – em prol das crianças da APAE de Guarapari.
Antes de passarmos pela Praia da Cerca, fizemos uma pausa de meia hora para ele se alimentar. “Quem vai caminhar comigo agora?”. Fez o convite e Alessandro assumiu a missão por alguns quilômetros. Mais à frente, próximo à Pedreira, Elcio disse: “vou tomar o remédio agora”. Desci do carro com um analgésico nas mãos e animada para começar a correr mais firme ao lado dele.
Sem olhar para trás – Seguimos, ainda caminhando, para esperar o remédio começar a fazer efeito. Ao chegarmos na Praia de Santa Mônica, a ansiedade para a parada do almoço batia ainda mais forte. Na areia, entre uma conversa e outra, percebi que dois corredores à nossa frente estavam o tempo todo olhando para trás. A cena já havia chamado a minha atenção antes. Decidi perguntar: “Elcio, você não olha para trás?”. Ele respondeu: “Pra quê, Dani? Sou sempre o primeiro a largar e o último a chegar no Desafio Vitória Anchieta. O tempo limite para conclusão da prova (18 horas) me preocupa, mas não fico bitolado. Esse estilo de prova “contra-relógio” me martiriza, só que eu não deixo de me divertir pelo caminho, de olhar o mar, de ver e contemplar a natureza”.
Meus olhos se encheram e, pra disfarçar uma lágrima que insistia em cair, abaixei e peguei uma conchinha. Elcio olhou para o mar e concluiu: “Que graça tem passar aqui correndo rápido e não perceber a natureza?”. Abaixei de novo e peguei outra. “Essa é a mais linda que a gente viu pelo caminho. Agora chegar de tirar o que é da natureza, Dani!”, brincou. Continuamos em caminhada e, quase no final do trecho da orla, vi duas conchas rosinhas grudadas em formato de coração. Desculpa, natureza! Mas precisei pegá-las.
Pausa para almoço – Pegamos o asfalto que nos levaria até a orla de Setiba e decidimos correr para chegar mais rápido. Eu estava sentindo fome e, assim como Felipe e Alessandro dentro do carro, doida pra chegar ao quiosque, onde um banquete nos aguardava. Desde a 1ª edição do Desafio Vitória Anchieta, Elcio e sua equipe de staff alimentam grande expectativa pela chegada nesse trecho, não apenas por ser a metade do caminho da ultramaratona, mas principalmente pelo encontro com a família do atleta. O cunhado prepara o cardápio e monta uma mesa especial para recebê-los. Os pais de Elcio, que moram no bairro, participam do almoço e, nos poucos minutos de descanso dele, conseguem transmitir muita energia e amor.
Alguns metros antes de pararmos, ele pediu que a gente organizasse o material que iria precisar para seguir o próximo trecho, sozinho, sem o nosso carro de apoio: “Preparem a minha mochila. Coloquem três géis de carboidrato, duas barras de proteína e abasteçam com água e isotônico”, orientou.
12h05. A mesa já estava posta e servida pelo chef Same Mattar. No cardápio: arroz, peixe frito, vinagrete, farofa, banana, batata fritas e uma salada de macarrão com atum, feita especialmente por Dona Alice, mãe de Elcio. O atleta se alimentou com moderação para evitar problemas intestinais durante o percurso que compreende o trecho do Parque Paulo Cesar Vinhas, que vai de Setiba até o Ulé.
Um banho, 30 minutos de descanso e ele decidiu seguir. O relógio marcava 12h35 quando respirou fundo e, com a boca trêmula por conta do frio da roupa molhada disse: “Vou correr!”. “E as dores?”, perguntei. “Diminuíram. Vou encaixar um ritmo agora”, disse animado.
Machucado, o Pirata – Seguimos com o carro de apoio pela Rodovia do Sol. A caminho da Praia do Ulé, vi um cão malhado, sentado em uma calçada, com um ferimento enorme próximo ao focinho. O olho esquerdo mal abria. Mas ele parecia ser forte, bem forte. Brigou na rua, mas não perdeu a luta. Paramos o carro, tirei foto e tentei, em vão, chamá-lo pra perto. Queria alimentá-lo e ver o ferimento. Mas ele permaneceu imóvel, me olhando. Entendi que estava ali para nos avisar como Elcio chegaria no nosso próximo ponto de encontro. Ferido, mas ao mesmo tempo forte e firme e com uma imensa vontade de continuar lutando. Mentalizei a frase de Rocky Balboa:
“Não importa o quanto você bate, mas sim o quanto aguenta apanhar e continuar. O quanto pode suportar e seguir em frente. É assim que se ganha”
Vômitos, bolhas nos pés e hidratação – Chegamos no Ulé para aguardar Elcio que percorria cerca de 12km no trecho mais temido do Desafio Vitória Anchieta. Decidimos tirar um cochilo pós-almoço. Por ser um ponto de troca, a praia estava cheia de corredores do revezamento, mas eu não tive forças de ir até lá cumprimentá-los. Apagamos. Dormimos por aproximadamente 1h15min, quando acordei assustada com o silêncio e achando que Elcio já tinha passado por nós. Felipe foi até a areia da praia debaixo de chuva e visualizou ele chegando.
14h30. Em silêncio, Elcio sentou na cadeira armada ao lado do carro. Extremamente exausto, começou a vomitar. A equipe, também sem dizer nada, observou e aguardou. “Esse pedaço é massacrante”, disse quando o mal-estar parecia ter passado. Em seguida, pediu ajuda para cuidar dos pés. Os tênis estavam cheios de areia e as bolhas incomodavam.
Enquanto ele se recuperava, olhei em direção à praia e vi o cão “Pirata”. Agora, acompanhado. Parecia ter escolhido o mesmo lugar que Elcio para cuidar de suas feridas e ter o alento de uma companhia. Depois de se hidratar e fazer um breve descanso, Elcio voltou a correr e afirmou: “Preciso chegar às 15h30 em Ponta da Fruta”.
Dentro do prazo previsto – Com a diminuição das dores, Elcio conseguiu voltar a correr com mais frequência e cumprir as suas previsões de chegada nos próximos pontos. 15h30 na Ponta da Fruta. 17 horas na Praia dos Recifes, onde paramos para ele se alimentar, hidratar e retirar a areia que pesava nos tênis. “Marquem 15 minutos de descanso”, pediu.
De um lado, Marrom. Do outro, Pretinha – Com as costelinhas visíveis, orelhas caídas e tremendo, Marrom sentou ao lado da cadeira em que Elcio descansava. Antes que eu pedisse, o ultramaratonista foi partindo o pão que comia para dividir com a cadela. Nem mastigou. Faminta, engoliu o primeiro pedaço inteiro. Peguei outro sanduíche e entreguei a Elcio. Assim, o corredor que, até então era “servido”, serviu.
“Ei, vocês são o quê?”. Marrom permanecia sentada ao lado de Elcio quando ouvimos um rapaz se aproximar com essa pergunta. Na mão direita, ele segurava uma coleira que amarrava a Pretinha, uma cadela medrosa, que não interagiu muito com a gente. Ao contrário do seu dono, que ao saber que Elcio estava correndo 110 km, revelou que pedalou de Itamaraju, na Bahia, até Linhares, no norte do Espírito Santo. “Mas eu não tinha carro me seguindo não. Foi com minhas pernas mesmo e eu ia parando pra descansar nos currais das fazendas que encontrava pelo caminho”, contou.
Os 15 minutos foram suficientes para alimentar nossas almas e o estômago da cadela. E sob o olhar triste de Marrom e de admiração do dono de Pretinha, deixamos a Praia dos Recifes.
Tempo, tempo, tempo… – Com a maré cheia, foi no trecho de Interlagos que o ultramaratonista encontrou mais dificuldades para correr na areia. A meta de Elcio era chegar às 17h30 na Barra do Jucu. E a previsão foi cumprida. Desci do carro na Praia do Barrão e caminhei com ele pelas ruas estreitas do bairro. Os meninos seguiam no carro de apoio lentamente ao nosso lado.
Angustiados com o horário, começamos a fazer contas. Meu Garmin já tinha esgotado a bateria quilômetros atrás. Não tínhamos a noção exata de quantos quilômetros ainda faltavam. Já ia marcar 18 horas e tínhamos quatro horas para percorrer toda a orla de Vila Velha, chegar à Prainha, atravessar a Terceira Ponte de carro, voltar a correr na Praça do Papa e finalmente chegar em Camburi.
Assim que alcançamos o asfalto na Rodovia do Sol, entrei no carro e Elcio voltou a correr pela ciclovia da pista debaixo de uma chuva fina. Fiz contato pelo WhatsApp com amigos corredores que estavam na chegada em Camburi. Uilson Júnior fez as contas. “Dani, do posto da Barra até a Prainha são 18km. Da praça do Papa até aqui na chegada são mais 10km. Deve estar faltando uns 29km pra vocês chegarem”.
Bernardo Andrade passou os nomes dos vencedores da categoria solo 110km e se preocupou em avisar a organização do Desafio Vitória Anchieta sobre a nossa localização.
Exaustão, dores, choro e corrida contra o relógio – Deixamos Elcio correndo sozinho por um pequeno trecho da Rodovia do Sol e fomos com o carro aguardá-lo em frente ao Motel Dunas, no início da Praia de Coqueiral de Itaparica. Minutos depois, ele chegou cambaleando, pedindo uma cápsula de sal. “Estou quase desmaiando”, afirmou. A expressão de extremo cansaço era nítida. Até a sua fala saía com dificuldades. Ele ingeriu rapidamente uma cápsula de sal e um analgésico. Ali, naquele momento, eu decidi que não entraria mais no carro. Correria com ele até a chegada em Camburi.
Até pra caminhar era difícil. Elcio emitia gemidos de dor. Comprei água de coco e ele aceitou beber. Em seguida, veio o choro. “Dani, a partir de agora eu vou precisar de um estímulo para continuar. Senão, eu não vou conseguir”. Saí do calçadão e fui correndo até o carro. Pedi a Felipe e Alessandro que mandassem uma mensagem no grupo criado pelo Elcio no WhatsApp e formado por amigos e familiares. “Digam que ele precisa de força! Peçam para mandarem áudios. Ele não pode desistir”, implorei.
A orla de Vila Velha parecia não ter fim. A sensibilidade de Elcio era tamanha que até uma simples ondulação no calçadão parecia uma ladeira para ele. Corríamos por poucos metros e quando ele avistava o desnível da calçada, parava e seguia em caminhada. “Isso aqui é um subida, percebe?”. Não, pra mim não fazia diferença.
Não para! Voltei ao carro e peguei o celular e uma barrinha de chocolate. Áudios e mensagens de amigos e familiares começaram a chegar. Dei play e ele ouviu todos enquanto comia o pedaço de doce. De Coqueiral, passando por Itapuã, até chegar à Praia da Costa, Elcio esboçou diversas tentativas de sentar. Não deixei. Fiquei com medo de, ao parar, ele ser tomado pelas temidas cãibras, que já o tiraram de uma edição anterior do Desafio Vitória Anchieta.
Chegamos ao Libanês e ainda faltava contornar o Morro do Moreno e chegar até a Prainha. Chovia bastante e a camisa que eu vestia era de algodão e pesava no meu corpo. Também sentia duas unhas do pé esquerdo arderem dentro do meu tênis. Elcio, apesar de muito cansado, já conseguia conversar melhor. O analgésico e a cápsula de sal pareciam fazer efeito. Subimos as ladeiras no entorno do Moreno caminhando e descíamos correndo.
Quando chegamos na área do Exército, embaixo da Terceira Ponte, eu parecia ter sido tomada por uma injeção de ânimo ao ver que ele estava mais disposto. Ou com menos dores. Queria correr forte para chegar logo na Prainha. “Calma, Dani, eu ainda preciso caminhar mais um pouco”, pediu com cautela.
Travessia para Vitória – Chegamos na Prainha e entramos no carro de apoio. Como prevê o regulamento da prova, de lá, o atleta deve seguir no veículo, atravessar a Terceira Ponte e desembarcar na Praça do Papa, onde está localizado o último ponto de controle do Desafio Vitória Anchieta. O relógio marcava 20h30 quando chegamos em Vitória. Informei a Elcio: “Temos 1h30 para correr toda a Enseada do Suá até a linha de chegada”.
Coração na boca – Hora de tomada de decisão. Elcio determinou que precisávamos correr, sem parar. Felipe e Alessandro foram orientados a seguir para o local da chegada. A missão: “avisar a organização que estávamos a caminho”. Foi o que fizemos. No caminho, duas situações quase nos pararam. Atrás do Shopping Vitória, dois suspeitos vieram em nossa direção. Pareciam estar armados. A rua estava deserta e não teve outro jeito a não ser apertar o passo e correr de medo.
Na Praça dos Namorados, perguntei as horas a um senhor que passava. “21h10”. Tínhamos 50 minutos para correr os últimos 6km até a chegada. Diminuímos ainda mais o pace e, ao subir o degrau de uma calçada, Elcio sentiu uma nova dor e parou. “Meu joelho saiu do lugar, Dani”. Enquanto pressionava sua perna, pensei em apoiá-lo nos ombros e seguir com ele mancando em uma perna só. Eu não ia deixar a prova dele acabar ali, logo ali. Depois de alguns segundos, conseguiu voltar a correr.
No posto de gasolina antes da Ponte de Camburi, a irmã de Elcio e o marido aguardavam a nossa passagem e nos abasteceram com a energia que precisávamos para encarar a dor e os últimos metros dos 110 quilômetros. Ele não me disse nada, mas acredito que pensou: “Dane-se a dor! Eu vou chegar!”.
Reta final – Depois que cruzamos a ponte, ficamos mudos. O papo que nos distraiu ao longo dos quilômetros anteriores deu lugar ao silêncio. Eu não conseguia ouvir nem o barulho de carros. O som da minha respiração e das batidas do meu coração pareciam soar dentro dos meus ouvidos. Eu não conseguia falar, mas gritava mentalmente para Elcio: “Vai dar tempo, você vai conseguir”.
Com o joelho parecendo ainda estar fora do lugar, Elcio imprimiu um ritmo em que eu já não conseguia mais acompanhar do seu lado. Fui ficando para trás quando faltavam uns 2km para chegar. Olhava para os postes de iluminação ao longo de toda a orla e eles pareciam não terminar. A chegada do Desafio Vitória Anchieta é exatamente no fim da Praia de Camburi e eu sabia que teria que ir até a “última luz”. Meu corpo tremia. Comecei a rezar. Pedi a Deus força para continuar correndo atrás dele.
A chegada – O último poste chegava cada vez mais perto. A chuva engrossava. Elcio estava a uns 50 metros à minha frente. Entendi que era um momento só dele e que eu deveria manter a distância para que ele cruzasse a linha de chegada sozinho. Estávamos no último quilômetro e eu não via ninguém. Só o Elcio correndo. Olhei para a areia da praia e parecia ter visto um cão preto correndo sozinho, em direção ao local de nossa chegada. A chuva dificultava a minha visão e a imagem do cachorro desapareceu como uma miragem. Era realmente um cão ou apenas a minha imaginação?
Não tive tempo de responder a minha dúvida. Elcio cruzou o que deveria ser a linha de chegada do Desafio Vitória Anchieta às 21h47. A organização já havia desmontado a estrutura, antes do tempo limite de conclusão da prova, que era às 22 horas. Estava recebendo o abraço da irmã, Juliana, do cunhado, Same, e dos seus dois amigos do staff, Felipe e Alessandro, quando eu cruzei a minha linha de chegada.
Caí no choro e vi o Elcio abaixar a cabeça de decepção. Sem dúvida, essa não era a maneira que ele gostaria de comemorar os 5 anos de participação no evento, como o único atleta a participar de todas as edições do Desafio Vitória Anchieta na categoria solo acima de 100km. “Levanta a cabeça! Você não merece isso”, foi o que eu consegui dizer em meio ao choro.
Decepção – Elcio estava triste. Eu, decepcionada. Na semana passada, assisti a um vídeo em que uma maratonista foi recebida com festa pela organização ao chegar em último lugar. Imediatamente a cena de respeito à atleta veio à tona em minha memória. Claro, não esperava a mesma recepção, embora Elcio mereça todas as honras. Ele só queria colocar a medalha no peito e entregar aos seus dois amigos do staff, companheiros há cinco anos, a premiação para o apoio, concedida pela organização do evento pela primeira vez esse ano.
Entramos em contato por telefone com Alen Brandizzi, organizador do Desafio Vitória Anchieta. Ele nos informou que foi induzido ao erro pela sua própria equipe de staff com relação ao horário de conclusão da prova. “Me disseram que era às 21h e o cansaço me fez concordar com o encerramento. Peço sinceras desculpas”. Alen disse que eles teriam, inclusive, tentado contato por telefone comigo, mas como eu estava correndo ao lado de Elcio e na chuva, preferi não manter o aparelho nas mãos.
Uma lição – Desligamos o telefone e um misto de sentimentos nos atingia. Em mim, pena e uma sensação de injustiça. No Elcio, o perdão. Foi então que compreendi a presença de cada um dos cães que encontramos no caminho ao longo da jornada. Os deuses que regem toda a energia que envolve uma ultramaratona enviaram todos eles para me fazer compreender o desfecho dessa história que não acabou quando cruzamos a linha de chegada.
Elcio deixou prevalecer toda a alegria que o atingia no início dos 110km ao passar por Branco e Caramelo. E, mesmo ferido, como o Pirata, não abaixou a cabeça. Alimentado da mesma esperança que Marrom e seguro como Pretinha, deu o seu perdão. E, munido de uma fidelidade digna apenas dos cães, foi dormir com o mesmo desejo após concluir as outras quatro edições: continuar participando da maior ultramaratona do Espírito Santo. Por fim, fez desaparecer, assim como o cão que penso ter visto em meio à chuva na chegada em Camburi, qualquer sentimento de tristeza e decepção. Elcio Alvares Neto. Primeiro a largar. Último a chegar. Enjoy!
* Elcio Alvares Neto é atleta da equipe Ultra Sports e tem apoio das empresas Habitat Sport Wear e Barbarão.