Uma das coisas mais fascinantes na corrida é conhecer as histórias de vida dos atletas. O advogado Thiago Soares Calhau “enxergou” nesse esporte não apenas uma forma de alcançar suas próprias metas, mas também de promover a inclusão social. Durante um treino, teve por acaso a primeira experiência como guia e, hoje, passou a ser os “olhos” de João “Quebra Guia”, que é ultramaratonista e jogador de futebol para cegos.
“Minha dedicação à corrida de rua tem uma íntima ligação com meu primeiro treino como guia de deficiente visual. Até abril de 2018, eu treinava de forma bem esporádica, cerca de uma vez por semana, até que tive a minha primeira experiência como guia, que acabou transformando a minha vida.
Foi em um sábado, quando eu estava correndo no calçadão de Camburi e vi uma pessoa, aparentemente cega, parada em frente ao quiosque K1, segurando em uma mão a bengala retrátil e na outra, a “guia”. Na hora imaginei que ele estivesse esperando alguém que havia combinado de treinar. Fui até o píer de Iemanjá e, na volta, parei em frente a ele para conversar com um colega.
Quando terminou a conversa, ele me abordou e pediu auxílio para correr pois era cego e seu guia havia ido para uma competição e não tinha com quem treinar. Na hora me sensibilizei com aquela situação e aceitei o desafio de correr a primeira vez como guia. Ele me deu algumas dicas e começamos o treino. Corri cerca de 2 km e quase morri de cansaço. Aquele dia transformou minha vida.
Cheguei em casa muito feliz e contei para minha família a experiência maravilhosa que tive como guia de um atleta com deficiência visual. À noite, eu deitei na cama muito feliz por ter ajudado uma pessoa, mas, na realidade, percebi que foi ele quem me ajudou.
Fiquei pensando naquela experiência e em todas as limitações que ele teria para treinar, mas a força de vontade dele superou todas as dificuldades. Naquele momento, percebi que a única desculpa que tinha para não treinar era a preguiça.
Daí por diante, deixei a preguiça de lado e resolvi mudar minha vida. Comecei a treinar regularmente, fiz a minha primeira prova de 5km, depois 7km, 10km… Foi quando percebi que a brincadeira tinha começado a ficar séria e resolvi procurar uma assessoria de corrida para direcionar meu treino para correr a minha primeira Dez Milhas Garoto e uma meia maratona.
Depois de quase um ano de treino, descobri que havia um projeto no Ifes, em Jucutuquara, que trabalhava com paratletas com diversos tipos de limitação. Foi quando resolvi ser voluntário como guia de deficientes visuais. Lá recebi algumas orientações do técnico e fui para a pista com os atletas, que realmente me ensinam como guiar e, de quebra, ainda me deram várias dicas para melhorar minha mecânica da corrida.
Já treinei com 5 atletas diferentes, entre velocistas, fundistas, ultramaratonistas e um que pratica salto em altura e distância. Este último eu fazia somente o aquecimento com ele, cerca de 15 minutos correndo na pista.
Atualmente, estou correndo com apenas um atleta: o João “Quebra Guia””.
A história é emocionante e serve de estímulo para muitos corredores. Thiago saiu de sua “zona de conforto” e conquistou na Garoto deste ano uma vitória em dobro, melhorando seu tempo e ajudando João a completar com sucesso a prova.
“Apesar de treinar com bastante frequência com o atleta que guio, não imaginei como seria difícil correr a Dez Milhas Garoto como guia de um atleta cego.
Tive que ficar o tempo todo atento aos possíveis obstáculos, tais como buracos e imperfeiçoes na pista, olho de gato (sinalização de pista), quebra-molas, garrafas de água no chão e atletas desatentos que resolvem parar no meio da corrida para tirar foto, isso tudo sem perder a cadência, passada, movimento dos braços, ou seja, tive que correr a prova inteira sem perder o foco.
Foram inúmeras variáveis que tive que pensar durante os 16 km de prova. Confesso que cheguei muito cansado, mais cansado do que quando completei minha primeira meia maratona, mas também tenho que admitir que foi uma das melhores provas da minha vida, especialmente ao cruzar a linha de chegada e olhar para o lado e perceber o quanto foi gratificante poder guiar aquele atleta até o fim da prova.
Infelizmente, faltaram apenas dois minutos para conseguirmos subir ao pódio, mas, em contrapartida, fiquei muito feliz em ter diminuído meu tempo em 12 minutos em relação ao ano anterior.
Encaro a corrida como sendo uma escada, a cada degrau um novo desafio, como correr 5km, 10km, 15km, meia maratona, maratona e ultramaratona. Nessa escalada percebi que poderia aliar a prática esportiva com a inclusão social. Afinal de contas, o que não te desafia não te transforma.
Para 2020, a dupla já tem vários projetos, tais como o campeonato regional de paratletismo, algumas provas menores de corrida de rua e a própria Garoto, em busca “daquele pódio”.
Como incentivo para quem um dia pensa também em ser guia, Thiago deixa um recado:
“Tenha essa experiência, é extremamente engrandecedora com ser humano. Muda sua forma de ver a vida e como você lida com os seus problemas. A força de vontade e determinação que esses atletas têm é contagiante. Doe um pouco do seu tempo para fazer o bem, pois faz muito bem para alma. Espero que essa história possa servir de incentivo para que outros atletas tenham essa experiência”.