“Na minha deficiência, eu não sou deficiente”.
Se hoje os casos de microcefalia relacionados ao zika vírus causam todo esse alarde internacional, imagine o drama de quem convive com a doença há 75 anos? A história da corredora Zilda Vieira, que nasceu com a má-formação cerebral, revela como o problema já era um mistério para a medicina.
Ela nasceu no dia 12 de março de 1940, filha de empregada doméstica. Sem qualquer diagnóstico, a doença – até então pouco conhecida – só foi notada quando a família percebeu o atraso no crescimento.
“Na época, a medicina não era tão avançada como é hoje. A minha mãe mesmo não sabia o significado de nada. Eu vivia de mão em mão. Fui criada na cozinha das casas onde ela trabalhava dentro de um caixotinho. Era toda molenga com a cabecinha caída. Não tinha firmeza nas pernas e só vivia caindo. Com o tempo, é que as pessoas foram notando a minha lentidão para começar a andar. Aí, começaram a amarrar uma gravata na minha cintura para ver se eu me firmava as pernas”, conta Dona Zilda.
Foi então que começou a jornada tortuosa na vida de dona Zilda. Sem a criação da mãe, foi adotada por algumas famílias e sofreu discriminação. “Em uma das casas, vivia junto com uma criança, mas a mãe dela decidiu afastá-la de mim com medo de eu passar doença para ela. Foi a primeira discriminação que sofri”.
Teve acesso à escola, mas lá aprendeu mais uma lição de rejeição. “Andava me arrastando e ia para a escola empurrando uma cadeira. Não sabia falar e nem conseguia ler e muito menos escrever. Até que a professora não quis mais me ensinar”.
Até que foi parar na casa de uma senhora que, cantando, conseguiu ensiná-la a falar e a ler. Aos 7 anos, foi encaminhada para um orfanato em Vitória de onde só saiu aos 16 anos de idade, quando foi adotada por mais uma família.
A morte da mãe adotiva fez com que Dona Zilda fosse morar nas ruas. “Foi o pior período da minha vida. Adoeci e tive o primeiro AVC. Fiquei internada na UTI e logo depois da alta tive um segundo AVC e parei de falar e de andar”, revela dona Zilda.
Foi submetida a tratamento no Crefes e meses depois voltou a falar e a andar com a ajuda de um aparelho ortopédico na perna esquerda.
A paixão pela corrida
“Um dia fui passear em Camburi e vi um monte de pessoas correndo e pensei: ‘Poxa, eu quero correr também’! Há cinco anos, dona Zilda conheceu o professor Luiz Claudio Ventura, um dos pesquisadores do projeto de extensão Paralímpico, da Coordenadoria de Educação Física do campus Ifes-Vitória, e recebeu o convite para fazer os testes de avaliação para começar a correr.
Mesmo com o aparelho ortopédico na perna, driblou as dificuldades de mobilidade e não parou de correr desde então. “Eu vim aqui no Ifes para fazer todos os testes e passei em todos. Graças a Deus, pois valeu a pena. Aqui todos nós nos ajudamos. Todo mundo é igual”.
Dona Zilda treina durante uma hora de segunda a sexta-feira e alterna corrida e musculação. Já participou de provas em Vitória e até da maior corrida de rua do Espírito Santo, a Dez Milhas Garoto. “A Corrida da Mulher, em Camburi, foi a minha primeira! Eu disse que ia mostrar que eu podia correr, coloquei a camisa e saí correndo. Não paro mais”.
E a corrida é apenas uma das atividades do dia-a-dia de dona Zilda. “Eu não paro e estou sempre ocupando minha mente. Faço aulas de artes no Centro de Convivência (CCTI) da Prefeitura, toco em uma banda (reco-reco, ganzá, agogô), canto em dois corais, já fiz natação, aulas de pintura, amo fazer caça-palavras e adoro ir ao forró dançar”.
Sobre os benefícios com a corrida, ainda afirma: “Sou outra pessoa depois que comecei a correr. O primeiro benefício foi a minha saúde. Eu me sinto bem, vigorada. Eu acho que as pessoas, mesmo com todas as suas limitações, precisam erguer a cabeça e dizer “vamos em frente!”.
Dona Zilda hoje mora sozinha, não tem filhos e metade do benefício que recebe do INSS é destinado ao pagamento de aluguel. Com orgulho, ela afirma: “morei na rua, mas não fiz duas coisas: não me prostituí e nem me alcoolizei”.
Um sonho? Dois! “Erguer a tocha olímpica e conquistar a minha casinha própria. Apenas isso!”.
Discriminação
Mesmo após ter sofrido tanto abandono e discriminação, dona Zilda revela que não guarda rancor. “Perdoar, já foi perdoado. Só que a gente nunca é a mesma pessoa após a mágoa. Sempre deixa marcas. O mais importante é eu não me sentir diferente. Sou igual a qualquer um. Na minha deficiência, eu não sou deficiente. Eu me sinto normal, como qualquer outra mulher”.
Projeto Paradesporto
Assim como dona Zilda, cerca de 80 atletas com deficiência são cadastrados e atendidos pelo projeto de extensão Paradesporto, da Coordenadoria de Educação Física do campus Ifes-Vitória, cujo objetivo é incentivar e orientar a participação em eventos e competições nacionais e internacionais. O projeto trabalha principalmente com o atletismo, mas abrange também outras modalidades esportivas.
O professor de Educação Física, Carlos Gusmão, explica que por ser uma atleta da terceira idade, Dona Zilda recebe orientação e atendimento redobrados. “Além de ter microcefalia, ela já teve paralisia cerebral em decorrência de dois AVCs. Apesar dela ter toda a vontade de competir, nós professores trabalhamos preocupados com a saúde. Por isso, estamos sempre atentos aos exames e semanalmente, medimos a sua pressão. Dentro do projeto temos dois tipos de público, o competitivo e o mais voltado para a saúde, que é o caso de dona Zilda”.
Excelente matéria!