A herança digital é uma realidade que tem desafiado os tribunais brasileiros, uma vez que no nosso ordenamento jurídico o assunto não é tratado de forma específica, havendo uma lacuna legal a respeito do tema.
Desta maneira, os julgados têm tratado a matéria aplicando as normas vigentes e disponíveis, tais como o Código Civil e a Constituição Federal, além de atribuir às decisões uma dose de bom senso.
Mas o que seria a Herança Digital? Na verdade, podemos dizer, de modo simples, que se trata de todo o conteúdo armazenado, ou até mesmo criado, pela pessoa falecida na rede, tais como senhas de acesso a redes sociais, perfis, blogs, criptomoedas, conteúdos armazenados no celular, fotografias e tudo mais que possibilita arquivamento de dados em nuvem.
A herança digital pode ter valor sentimental para a família e também financeiro, razão pela qual urge que seja criada uma lei específica para dispor sobre a transmissão destes bens aos herdeiros do falecido.
Uma questão que surge: como tratar o assunto enquanto não há regramento? E mais: como conciliar o direito do falecido à privacidade e o direito dos familiares/herdeiros sobreviventes ao acesso aos dados deixados por ele? É possível pensar em um testamento a respeito dos bens digitais?
O problema que se apresenta é a forma de acesso ao acervo digital deixado pelo falecido, e neste caso o Poder Judiciário tem decidido de diferentes maneiras, é que a respeito de alguns desses dados tem-se entendido pela manutenção da privacidade do autor da herança.
Quando o bem tem conteúdo exclusivamente econômico, como é o caso dos chamados criptoativos – eis que o sistema exige a chave de acesso – há decisões no sentido de que a chave seja revelada aos herdeiros. O mesmo se diga dos direitos de imagem de pessoas famosas ou contas monetizadas de influenciadores digitais.
No entanto, o acesso dos herdeiros às plataformas de redes sociais e perfis é controvertido. Em recente decisão o Tribunal de Justiça de São Paulo negou o acesso de uma mãe à rede social de sua falecida filha, pois a hipótese é vedada pela plataforma. O julgador considerou ser direito personalíssimo do usuário que “não se transmite por herança no caso dos autos, eis que ausente qualquer conteúdo patrimonial dele oriundo”.
A decisão ressaltou adicionalmente que o termo de uso ao qual a filha da autora aderiu veda expressamente a transmissão da senha a terceiros, reforçando o caráter personalíssimo do perfil na rede social e que o documento de adesão prevê expressamente que o usuário, em vida, “pode optar por indicar o contato de um herdeiro para cuidar de sua conta que seria transformada em memorial ou excluir a conta permanentemente”. Se a pessoa falecida não indicou contato, conclui-se que o caminho seja a exclusão da conta, pois “não há transmissão post mortem dos direitos da personalidade no direito brasileiro”, constituindo-se correta a exclusão da conta se foi feita de forma regular, o que também não dá direito a qualquer indenização por parte dos herdeiros. (TJSP – ApCiv 1119688-66.2019.8.26.0100)
No momento, o testamento se mostra uma excelente maneira de evitar que as questões acima sejam decididas no âmbito do Poder Judiciário. Tal testamento deve detalhar a existência do acervo digital e manifestar expressamente a vontade daquele que elabora este documento, impondo aos herdeiros e/ou legatário a forma e qual o conteúdo digital que lhes será acessível após a morte do testador.
Porém, não havendo testamento público ou privado declarando a vontade do falecido, e dada a ausência de norma específica, a transmissão da herança digital segue a regra geral de sucessão e é transmitida aos herdeiros legítimos como um todo, coeso, sem distinção entre acervo “tradicional” e digital, ressalvados os entendimentos quanto ao caráter personalíssimo do conteúdo que, conforme entendimento acima, não se transmite aos herdeiros.
Chrisciana Oliveira Mello, sócia de Carlos de Souza Advogados, aluna especial do curso de mestrado em Processo Civil da Universidade Federal do Espírito Santo.
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