O filme de Steven Spielberg sobre o presidente norte-americano Abraham Lincoln certamente marcará a história do cinema como um grande feito. Em tempos de grande descrédito popular com a política, há certamente no filme muitos elementos para reflexão. As lições do filme não se limitam ao seu tempo de projeção e já se encontram disponíveis várias resenhas publicadas. Permito-me neste espaço uma breve reflexão weberiana da respectiva obra de Spielberg, recorrendo, portanto, ao clássico A política como vocação (1919).
Segundo afirmou Max Weber, três qualidades determinantes do homem público podemos notar com precisão: paixão, sentimento de responsabilidade e senso de proporção. Sabemos muito bem pelo noticiário que, sem paixão, a política torna-se um lugar comum de barganhas por cargos e espaços de poder. Aceitamos com tranquila naturalidade, em diversas instâncias dos poderes executivos, aparelhamentos e loteamentos indiscriminados da máquina pública em nome de uma suposta governabilidade. Em tal contexto desalentador, manter o fogo aceso da paixão na política é tarefa de Sísifo. Conforme sugeriu o presidente Lincoln, você pode enganar algumas pessoas o tempo todo ou todas as pessoas durante algum tempo, mas você não pode enganar todas as pessoas o tempo todo. Duas éticas são necessárias ao grande líder político convicção (ideais) e responsabilidade (consequências).
Sentimentos de responsabilidade, principalmente quando se encerra o cosmético jogo político-eleitoral, tampouco nos parece algo que mereça ser comemorado entre nós. Seguindo a linha de raciocínio weberiana, o bom político deve ter os nervos de aço, ou seja, ele deve permitir que os fatos ajam sobre si para que possa tomar decisões que considerem a responsabilidade com a coletividade. Creio ser praticamente irresistível não reler Weber após o filme: Política se faz usando a cabeça e não as demais partes do corpo. Muito embora a política deva ser feita com a cabeça, a defesa de uma causa (convicção) nasce e se alimenta da paixão.
Lincoln não lidou efetivamente com um Parlamento dócil e de homens públicos integralmente caracterizados pelas qualidades políticas sugeridas por Weber. Ele exerceu com maestria a arte da política, mobilizando recursos políticos e aliados heterogêneos para aprovar a décima terceira emenda que aboliu a escravidão nos EUA. O fim da Guerra de Secessão (1861-65) pode, portanto, ser resumido como uma vitória do progresso frente ao atraso, ainda que o presidente Lincoln tenha contado com elementos conservadores e indecisos na sua base de apoio. Não se tratou aquele episódio histórico exclusivamente de um caso humanitário, mas de um momento de grande impasse político que dividiu a nação.
No Brasil, o impasse da abolição da escravidão se arrastou por mais tempo e não foi resolvido no cordial jogo político entre conservadores e liberais no Parlamento. Governabilidade e estabilidade do Império eram as grandes prioridades da classe política de então, não a industrialização. O crescimento econômico e o pleno desenvolvimento da vida nacional não eram relevantes para os donos do poder. Evocaram-se inclusive naqueles tempos motivos pseudo-humanitários para que a abolição não se concretizasse entre nós. Houve até quem dissesse que o País não poderia bancar o fim da escravidão e que as fazendas iriam quebrar sem a necessária mão de obra escrava. No filme sobre Abraham Lincoln, pode-se constatar que tais tipos de argumentos também estiveram presentes nos debates parlamentares norte-americanos: conservadores temiam as imprevisíveis consequências da liberdade dos escravos, como se a liberdade de alguns para oprimir outros devesse ser irrestrita e derivasse de uma ordem natural amparada por interpretações teológicas particulares.
Essa visão perdeu nos EUA porque havia Lincoln no comando. Mesmo assim, esperou-se um século pela emergência dos movimentos dos direitos civis para abolir a discriminação e a segregação racial na mítica terra das oportunidades. Curiosamente, entre os seus notórios pais fundadores, Washington, Madison e Jefferson foram paradoxalmente senhores de escravos e eloquentes porta-vozes da liberdade e igualdade. Não por acaso, as desigualdades sociais estão novamente entre os grandes temas que dividem a sociedade norte-americana. Para aqueles que buscam convergências no espelho de Próspero, essas breves reflexões podem ser de alguma valia.
Rodrigo Medeiros (D.Sc.)
Rodrigo,vi o filme,muito especial e um ator espetacular.
Gostei de sua analise muito apropriada para os dias atuais aqui e lá nos USA.
Abraços