Ainda estão em curso os desdobramentos das manifestações de junho, porém acreditamos ser preciso avançar na sua interpretação. Existem riscos assumidos de incompreensões e incompletudes analíticas, pois estamos vivenciando fatos novos a cada dia. Como disse o primeiro-ministro chinês Chou En-lai, em Genebra, em 1953, respondendo a um jornalista francês que lhe perguntou o que pensava sobre a Revolução Francesa: Ainda é muito cedo para dizer alguma coisa. Embora seja cedo, não podemos deixar de buscar explicações para as manifestações sociais de junho no Brasil, incluindo alguns de seus desdobramentos. Ao fazê-lo, reconhecemos que toda história é uma história do presente.
Estamos diante de uma crise da representação política, algo que é fenômeno mundial, mas que no Brasil assume características próprias. Segundo levantamento da Transparência Internacional, 81% dos brasileiros consideram os partidos políticos corruptos ou muito corruptos, acima dos 65% da média internacional de 107 países (O Estado de São Paulo, 09/07/2013). Esta pesquisa foi feita em março e, portanto, evidencia que já havia entre nós um contexto latente de insatisfações sociais com o jogo político. Tal elemento motivador se revelou nas manifestações de junho, permanecendo presente nos seus desdobramentos de julho. Ele deverá estar presente em futuras manifestações até as eleições do próximo ano. Há uma percepção generalizada de que o mundo da política descolou da sociedade, isolando-se dos problemas cotidianos da cidadania. Nesse sentido, os poderes da República não responderiam adequadamente aos anseios e demandas dos representados, ou seja, de quem carrega a pesada carga tributária de 35% do PIB.
Notamos existir um sentimento de que o custo do poder público é desproporcional em relação aos retornos qualificados para a cidadania. Estudo realizado pela Transparência Brasil para o ano de 2007 comparou o orçamento do Congresso Nacional brasileiro com os de Alemanha, Argentina, Canadá, Chile, Espanha, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, Itália, México e Portugal, e concluiu que o Congresso brasileiro foi o que mais pesou no bolso da população. Outro estudo divulgado mais recentemente, no dia quinze deste mês de julho na revista britânica The Economist, colocou os parlamentares brasileiros na incômoda sexta posição de um ranking de vinte e nove países que analisou os gastos com salários de parlamentares. Ficamos atrás respectivamente de Nigéria, Quênia, Gana, Indonésia e África do Sul e à frente em termos desse gasto em relação à renda média, por exemplo, de França, Suécia, Espanha e Noruega.
As manifestações das ruas, desde junho, questionam esse sistema político distante da sociedade e muitas das atitudes habituais dos seus líderes. Felizmente em nosso país, a maioria das pessoas ainda confia no poder transformador do voto (cf. Data Popular, julho de 2013). O fato é que a forma de se fazer política envelheceu e a sociedade demanda novos canais de participação, além de regulação social dos poderes políticos e econômicos.
Não acreditamos que esse sistema possa se ajustar espontaneamente para dar respostas satisfatórias ao novo tempo demandado pelas ruas. Precisamos de uma renovação em alto nível na cultura política brasileira e que as novas formas de representação sejam mais próximas da realidade cotidiana da população. Há espaço para se avançar e cortar parte do rol de privilégios exorbitantes vigentes no sistema político, algo que certamente ajudaria a tornar menos distante a relação entre representantes e representados. Sobre as manifestações de junho, a professora Yvonne Maggie foi enfática: o povo nas ruas pedia reforma dos políticos (Não tem pão, comam brioches! G1, 11/07/13). Segundo a professora, aquela cena do povo em cima do Congresso brasileiro literalmente nada tem a ver com as descrições da queda da Bastilha, sobretudo porque o Congresso continua lá, firme e a Bastilha foi abaixo. A Bastilha era uma prisão que representava a iniquidade da monarquia francesa, e o edifício das duas cúpulas que compõem o Congresso é, hoje, o símbolo máximo da democracia corrompida. Há algo em comum, pelo inverso. O que se pode pensar nesse contexto do ponto de vista político? Renovação parece ser a palavra-chave para uma sociedade que ainda acredita no poder transformador do voto.
Questões econômicas contemporâneas também povoam as mentes dos brasileiros – baixo dinamismo econômico (pibinho), inflação persistentemente elevada e com alta difusão, reduzida taxa de investimentos produtivos, incluindo a incapacidade de renovar a infraestrutura econômica, desindustrialização e geração de empregos majoritariamente de baixos salários. As pessoas não foram às ruas motivadas exclusivamente por sua situação econômica, mas há desconforto social com um cenário econômico incerto e com políticas públicas percebidas como inconsistentes em diversas instâncias de poder da nossa federação. Uma eventual deterioração da situação econômica poderá muito bem complicar mais adiante o quadro de insatisfações e inquietações sociais latentes. Nesse sentido, as políticas de segurança pública brasileira precisarão se tornar mais inteligentes e eficazes para garantir o direito social de manifestação pacífica, contendo, nos termos da lei, os grupos violentos que se aproveitam desses protestos para propagar o crime.
Grande é a insatisfação com a qualidade e o custo dos serviços públicos, incluindo aqueles sob a responsabilidade de concessionários privados. Ocorreram nos últimos anos reconhecidos progressos em alguns serviços públicos, mas ainda há grandes desafios pela frente. Um olhar mais abrangente sobre a realidade econômica brasileira nos revela que o comércio e os serviços já respondem por 70% do PIB e pela maior parte dos empregos gerados. Existe nestas atividades um grande espaço para se buscar ganhos de produtividade e de eficiência para reduzir custos e melhorar os ganhos coletivos de bem-estar. Será preciso, inevitavelmente, retomar o caminho das reformas institucionais para elevar ganhos sustentados de produtividade e modernizar as relações socioeconômicas de modo a tornar o Estado brasileiro mais eficiente e transparente.
O Brasil ainda não venceu o seu histórico estado de subdesenvolvimento, um complexo quadro composto por elevado nível de concentração de renda e enormes desigualdades sociais. O cenário nacional de baixo crescimento econômico, com desindustrialização e inflação elevada, não indica que teremos facilidades pela frente. No plano internacional, por sua vez, persiste um momento econômico e político difícil, com tensões difusas e conflitos multifacetados espalhados por diversas regiões do planeta. A política precisará gerar respostas eficazes para os impasses atuais e, para tanto, a qualidade do seu jogo precisará melhorar muito entre nós.
Não acreditamos que seja ainda tão cedo para se dizer algo sobre a Revolução Francesa. Quem desejar mais tempo para refletir sobre as mensagens das ruas brasileiras, pode até encontrar algum conforto no pouco tempo que se passou e no processo ainda em curso. Compreendemos, por outro lado, que o momento é de renovação política e que a frase célebre de Danton carrega certa visão provocadora: audácia, mais audácia, sempre audácia. Audácia sim, mas sem esquecer capacidade e competência para se enfrentar em alto nível os desafios presentes e futuros.
Haroldo Correa Rocha é professor da Ufes
Rodrigo Medeiros é professor do Ifes
Alguns desses dados apontam outras interprestações… 81% das pessoas acham que os políticos são muito corruptos e 65% acham que o país é mais corrupto que os do resto do mundo! Mas há 10 anos atrás, será que essa avaliação é diferente? A corrupção foi inventada agora e por isso as manifestações?
E as manifestações deixam para acontecer quando o país vive os resquícios duríssimos da crise internacional. E começaram por motivos que nada tangem à corrupção, mas por causa de um aumento de passagens de R$ 0,20. Minha interpretação é que a sociedade não está interessada em discutir corrupção, mas os problemas sociais.
Os problemas sociais são amplificados pela corrupção, que acaba tirando recursos que poderiam ser destinados a mitigá-los, mas não são a mesma coisa. Para mim, o distanciamento dos políticos da motivação não está apenas na forma (novas mídias sociais) mas também no conteúdo. Se negam a discutir as alternativas de políticas, voltadas à distribuição de renda e ao modelo de urbanização das cidades.