“Não me representa!” Esse mantra ecoa mundo afora, sonorizando e evidenciando a crise por que passa, em ambientes democráticos, o sistema político-partidário e institucional na atualidade. Ele reverbera, já há tempos, uma rejeição epidêmica e o grave descrédito a um modo de representação e de governança que parece anacrônico, caro e ineficiente a maiorias cada vez mais significativas.
Segundo Manuel Castells, em seu necessário livro “Ruptura – A crise da democracia liberal”, “na raiz da crise de legitimidade política está a crise financeira, transformada em crise econômica e do emprego, que explodiu nos Estados Unidos e na Europa no outono de 2008. Foi, na realidade, a crise de um modelo de capitalismo, o capitalismo financeiro global”.
Como diz o próprio Castells, essa crise política é global, com esse importante traço comum, mas ela também tem suas colorações nacionais. A brasileira, por exemplo, tem, sim, esse ingrediente planetário, mas se agravou assustadoramente por uma série de equívocos na gestão de políticas econômicas, em ambiente atravessado por práticas de corrupção endêmicas.
Esse conjunto explosivo nos jogou no fosso da mais grave recessão econômica de nossa história, justamente interrompendo um também histórico processo de diminuição das desigualdades entre nós, iniciado com a estabilidade da moeda. Esse desencontro tão marcante na vida nacional só fez ampliar o descrédito da ação política.
Nesse cenário, quando se iniciam novos mandatos, com novos agentes políticos eleitos, parece-me importante pensarmos um pouco mais sobre alguns pontos da questão do abismo que se vem formando entre a sociedade e o sistema político-partidário e institucional. Digo isso, porque o divórcio entre as institucionalidades democráticas e os cidadãos eclodiu e alastrou-se com crise financeira e econômica – não se pode negar –, mas também há questões intrínsecas à vida política que devem ser observadas e compreendidas.
A ausência de uma reflexão consistente nesse sentido pode acelerar os passos rumo à falência dos sistemas democráticos atuais, ao comprometimento da democracia como valor civilizatório fundamental e ao abandono da política como prática virtuosa para a constituição do bem comum pela via dos consensos, em ambiente de liberdade, solidariedade e igualdade na diversidade.
Muitos dos eleitos se sagraram nas urnas como uma novidade nesse labiríntico ambiente em que se transformou a política nacional. Essa renovação é auspiciosa, mas sozinha não resolve a crise de legitimidade. É preciso ir além do fazer político nesse desgastado, desacreditado e falimentar sistema.
Formular um mandato para este tempo requer engenho e arte, pois demanda lidar com a estrutura do ultrapassado, do que está se dissolvendo em praças públicas – reais e virtuais –, e ao mesmo tempo construir o novo que não se sabe o que será. De toda sorte, há questões bastante evidentes e impositivas sobre as quais pensar.
Uma delas é que a nova política precisa ser feita em dois ambientes diversos, ainda que absolutamente interligados: o presencial e o midiático/ virtual. Temos de nos ocupar de reuniões, comissões, organização de bancadas temáticas, dentre outros fóruns e lugares de atuação orientados pela presença física e suportados pela materialidade. Mas é necessário saber que esse mundo precisa estar sintonizado e compartilhado no universo das conexões midiáticas, incluindo meios de comunicação tradicionais e as aplicações diversas da internet, como as redes sociais digitais.
É preciso, também, trazer para o modus operandi da política, em suas várias dimensões, o universo das tecnologias digitais, de modo amplificar as interações com os cidadãos e com as diversas comunidades que formam o conjunto múltiplo de nossas sociedades. Essa atualização digital também é benéfica para imprimir eficácia às institucionalidades no cumprimento de seus deveres e obrigações, com maior efetividade e menores custos, por exemplo.
Nas palavras de Castells: “A luta pelo poder nas sociedades democráticas atuais passa pela política midiática, pela política do escândalo e pela autonomia comunicativa dos cidadãos. […] A digitalização de toda a informação e a interconexão modal das mensagens criaram um universo midiático no qual estamos permanentemente imersos. Nossa construção de realidade e, por conseguinte, nosso comportamento e nossas decisões dependem dos sinais que recebemos e trocamos nesse universo. A política não é uma exceção a essa regra básica da vida na sociedade-rede na qual entramos em cheio. Na prática, só existe a política que se manifesta no mundo midiático multimodal que se configurou nas últimas décadas”.
A reinvenção da ação política e de nossas institucionalidades face a essa nova contingência histórica é também abordada em outro livro seminal para entendermos o que se passa e formularmos uma ideia de horizonte democrático e inclusivo em tempos de profundas mudanças: trata-se de “Crise e reinvenção da política no Brasil”, de Fernando Henrique Cardoso.
A propósito, ele diz: “Movimentos de cidadãos têm hoje uma potencia inédita, mas mudanças duradouras nos modos de organizar a vida em sociedade requerem institucionalização de novas práticas e valores. O desafio está justamente em encontrar – ou inventar – as formas mais propícias à reconexão entre ‘o mundo da vida e da sociedade’ e o ‘mundo das instituições e do Estado’”.
O ex-presidente salienta: “Para renovar, precisamos de líderes que sejam portadores de nova mensagem, que se distingam do passado, a começar pela forma como se comunicam com a população. Fazemos reparos ao meio político, que se distanciou da vida, e apelamos a um reencontro”.
Fernando Henrique Cardoso, além dos desafios das mensagens e dos meios, aponta “os inimigos da mudança, os adversários da contemporaneidade: de um lado o estatal-corporativismo, de outro o fundamentalismo do mercado. Ambos incompatíveis com o mundo contemporâneo”.
Na busca de reinvenção da política em tempos de midiatização, e considerando esses dois grandes entes desafiantes, Fernando Henrique Cardoso pondera: “O Estado não é igual ao público, e o privado, para ter sentido público, não deve basear-se no individualismo possessivo, e sim na busca pelo interesse comum, do bem comum. O interesse público é o interesse de todos, não o do Estado. O que não quer dizer que não existam interesses que são das classes, de segmentos da sociedade, ou dos indivíduos. Nem quer dizer que não existam conflitos entre eles. A preservação da democracia deve ser vista como um interesse comum”.
Não é à toa que o ex-presidente assinala a importância da democracia. Nesse caminho, acrescentaria que o fazer político também deve ser visto como um interesse comum. Isso porque é a política, em ambiente democrático, que justamente viabiliza a preponderância do interesse comum, nos mais variados âmbitos e aspectos, nos estritos marcos da vida civilizada, que prevê a produção de maiorias em ambiente de divergências sem que se comprometam as garantias da cidadania e dos direitos humanos e civis a todos.
E aqui chegamos à questão dos valores. Nesse mundo de transições turbulentas, é preciso ter claro que se, por um lado, instituições e práticas tornadas obsoletas por avanços das técnicas e das ideias precisam se atualizar diante de um novo modo de existir e de se relacionar, por outro lado não se pode desprezar a importância das institucionalidades e muito menos a imperiosidade dos valores civilizatórios.
A democracia não é um instrumento, mas um valor a sustentar e orientar o imprescindível fazer político.
A dignidade humana não pode jamais ser relativizada. Direitos humanos e civis são a base do humanismo que deve nortear todo e qualquer esforço, individual e/ou coletivo, de fazer a História andar.
O primado da razão e das ciências não pode ser abandonado em função de dogmas e carismas, dentre outros atributos que, perigosamente, nos afugentam da arena pública do interesse comum e nos arrastam insidiosamente para o universo de questões da vida privada, como as crenças de cada um, por exemplo.
Steven Pinker, no livro “O novo Iluminismo – Em defesa da razão, da ciência e do humanismo”, considera: “Apesar de todas as deficiências na natureza humana, ela contém as sementes do seu próprio aperfeiçoamento, contanto que proponha normas e instituições que canalizem interesses particulares para benefícios universais. Entre essas normas estão a liberdade de expressão, a não violência, a cooperação, o cosmopolitismo, os direitos humanos e o reconhecimento da falibilidade humana; entre as instituições estão a ciência, a educação, os meios de comunicação, o governo democrático, as organizações internacionais e os mercados”.
Manuel Castells, no livro citado, fala da instalação de um verdadeiro caos na contemporaneidade. “De fato, a ruptura da relação institucional entre governantes e governados cria uma situação caótica que é particularmente problemática no contexto da evolução mais ampla de nossa existência como espécie no planeta azul”, observa o pensador da sociedade-rede.
E por que o caos é assustadoramente potente? Porque, explica Castells, a democracia liberal está deixando de existir “no único lugar em que pode perdurar: a mente dos cidadãos”. Daí a importância de investirmos na difusão e educação acerca dos valores da civilização.
O poeta francês Paul Valéry escreveu que a civilização tem a fragilidade de uma vida. Isso equivale dizer que o nosso investimento no revigoramento da política e no reencontro do fazer político com a sociedade passa, sim, pela reconstrução dos laços de interação e diálogo com os cidadãos e pela atualização de nossas instituições, mas depende fundamentalmente também do nosso investimento na educação para a vida política e seus valores civilizatórios fundamentais como base da paz, da prosperidade, da emancipação cidadã e do desenvolvimento humano para todos.
Não há receita para que sigamos nesse caminho. Mas não há outro rumo a se tomar se quisermos fazer ecoar novamente, aqui e mundo afora, a legitimidade e a representatividade da ação política, se quisermos promover o reencontro dos cidadãos com a vida político-institucional, uma das mais preciosas conquistas e ao mesmo tempo garantias da Humanidade.
Paulo Hartung
Economista
Governador do Estado do Espírito (2003-2010 e 2015-2018)