Por José Antonio Bof Buffon (*)28
Passados os piores dias da pandemia (esperamos), os debates e as projeções tendo em vista as eleições municipais começam a ser incrementados. E, a cada certame, renova-se a esperança de que cada município encontre a equação para uma política-administrativa adequada ao seu desenvolvimento.
Com o propósito de contribuir com as pessoas, organizações e entidades que estarão mais próximos ou voltados ao processo político-eleitoral, notadamente para aqueles que se envolverão na confecção dos programas de governo e no apontamento de ações e projetos estratégicos, achei por bem publicar, com pequenos ajustes, um artigo que escrevi para a Revista Finança dos Municípios Capixabas, em 2003. Segue, então.
O Município e o Desenvolvimento
1. Pequena introdução ao desenvolvimento.
O desenvolvimento econômico – de países e regiões – objeto de inúmeras controvérsias teóricas e estatísticas no decorrer dos últimos 70 anos, antes de qualquer coisa, só pode ser realizado e entendido como desenvolvimento social; só pode ser a realização de um potencial presente na sociedade, já inscrito nas pessoas, nas instituições, na base material e produtiva de determinada sociedade. E só poderá ser realizado, em todos os sentidos, como produto da vontade, do trabalho humano, tornando-se resultado de atitudes consequentes.
Em qualquer que seja o ângulo, a escala, ou a experiência histórica que possamos ter em mente, observa-se que para o processo de desenvolvimento de determinada sociedade – e respectiva fração do território – concorrem fatores determinantes e fatores condicionantes. Fatores determinantes são sempre os fatores internos, endógenos, aqueles próprios, característicos e constitutivos de cada realidade. Estes, sejam favoráveis ou contrários ao processo de desenvolvimento, vinculam-se às variáveis que estão sob o controle do sujeito do processo – a própria sociedade, por intermédio de suas práticas e de suas instituições. Os fatores condicionantes, por sua vez, são os fatores externos, exógenos – são as variáveis fora do controle do sujeito do processo de desenvolvimento (de determinada localidade, município, região ou país).
Da mesma forma que os fatores internos, os fatores externos também podem ser favorecedores ou constrangedores do processo de desenvolvimento. Apresentam-se, regra geral, sob a forma de janelas de oportunidades (quando favoráveis) ou de ameaças (quando desfavoráveis). Quando favoráveis, podem ser mais bem apropriados e, quando desfavoráveis, podem ser contornados ou minimizados, a depender do arranjo social e institucional interno – este, sim, a base do desenvolvimento, sobre a qual operam os fatores exógenos (favoráveis ou contrários).
Em suma, mais do que mero desejo de ser desenvolvido, o processo de desenvolvimento, em dada sociedade, requer a realização de um certo potencial. Para tanto, requer procedimentos e práticas sociais (e políticas), sobretudo cooperação, além de instituições adequadas; requer inovações pertinentes e eleição de prioridades; requer, enfim, uma nova forma de se apropriar do excedente econômico, de consumi-lo e reinvesti-lo. Ao fim das contas, o desenvolvimento requer e proporciona transformações estruturais nas diversas esferas da vida social.
Convém insistir na ideia de que, para que o potencial de desenvolvimento inscrito em determinada realidade seja adequadamente liberado e devidamente realizado, se torna imperiosa a concorrência de instituições adequadas. “Instituições”, no caso em pauta, não devem ser entendidas como organismos públicos ou privados, mas sim como um conjunto de regras, procedimentos, práticas e condutas, sobretudo cooperação, muitas das quais nem mesmo requerem uma própria “institucionalização”.
Os homens públicos, prefeitos e vereadores, precisam ter clara essa perspectiva do desenvolvimento, sob pena de naufragarem em seus propósitos. Precisam estar devidamente conscientes de que as ações locais, quando bem articuladas e bem “institucionalizadas”, independentemente de fatores exógenos favoráveis, são as que verdadeiramente dão ensejo ao desenvolvimento e proporcionam identidades específicas a determinadas frações do território – sejam elas a localidade, o município, a região, o estado etc.
A dotação de infraestrutura, o financiamento “externo” e a política de fomento – fatores emanados de outras esferas de governo – apenas alargam as possibilidades e horizontes, mas o desenvolvimento efetivo, seu conteúdo, sua forma, seu ritmo e sua capacidade de auto sustentação no longo prazo resultam da capacidade local de conceber e implementar arranjos “institucionais” de atores que sejam capazes de empreender permanentemente novas “combinações de fatores”. Em suma, o território municipal, palco da ação local, é o espaço, por excelência, da coordenação de atitudes, da cooperação, do aprendizado e da inovação.
2. Democracia, planejamento e desenvolvimento municipal
A Constituição de 1988, sob inúmeros aspectos, representa um nítido marco divisor na história política recente do país. Representa, em primeiro lugar, o coroamento de uma primeira fase do processo de democratização, fase iniciada ainda no governo Geisel e aprofundada na campanha das “Diretas-Já”. Mas, ao mesmo tempo, representa também o início de outra fase do processo de democratização: a fase em que se passa da institucionalização da democracia às práticas (políticas e sociais) democráticas, em particular, às práticas democráticas exercidas em âmbito municipal, sobretudo às práticas pró-inclusão e pró-desenvolvimento.
Enquanto a elaboração da Carta Magna representa um momento no tempo, com início e fim claramente delimitados e com conteúdo até certo ponto inequívoco, a instauração das práticas democráticas, ou seja, o verdadeiro exercício da democracia representa um processo que se prolonga no tempo e que requer um permanente esforço de aperfeiçoamento.
Isso quer dizer que o avanço da democratização, no âmbito dos contornos definidos pela Constituição Federal, não representa um acontecimento automático, nem tampouco um processo que se desenrola uniformemente, abarcando no mesmo momento, na mesma intensidade e da mesma forma todos os recantos do país. A democratização do país é, na verdade, um processo político e social que avança a ritmos inteiramente diferentes, com idas e vindas, com avanços e retrocessos, em cada uma das unidades que compõem a federação brasileira. Esses diferentes ritmos e formas são particularmente percebidos em âmbito municipal.
No Brasil, há ainda muitos municípios nos quais as prerrogativas democráticas conquistadas em decorrência da Constituição de 1988 ainda não saíram do papel. São municípios nos quais o eixo da campanha dos seus candidatos a prefeito centra-se ainda no “arrancar verbas a fundo perdido do governo federal”. Nesses municípios os processos democráticos de planejamento e gestão, regra geral, estão inteiramente ausentes, a democracia e a participação estão ainda por vir, e a municipalização das políticas, quando se verifica, apresenta-se ainda sob a forma da “prefeitorização”, não da municipalização e menos ainda sob a forma da participação em prol da gestão local.
Entretanto, há muitos municípios brasileiros, pequenos e grandes, ricos e pobres, localizados nos mais diversos recantos do país, dirigidos por mandatários filiados às mais diversas correntes ideológicas e políticas, que se lançaram convictamente ao desafio de planejar e gerir democraticamente o desenvolvimento municipal. São municípios nos quais o prefeito deixa de ser o “dono”, o “autor” das prioridades enunciadas no orçamento municipal e passa a exercer o papel de gerente, de articulador e fomentador, em uma gestão exercida em parceria com a sociedade – uma gestão participativa, mediada pela atuação dos diversos conselhos municipais e demais instituições locais.
Em muitos desses municípios, além do planejamento e da gestão democrática, tem- se avançado também para a prática do planejamento e da gestão estratégica. Isso acontece quando a municipalidade, olhando para o seu futuro e, ao mesmo tempo, para suas mais evidentes potencialidades e fraquezas, procura encontrar o seu próprio caminho, levando sempre em conta, é claro, as restrições que lhe são impostas pela disponibilidade de recursos próprios e pelo ambiente externo no qual o município se insere.
Um dos pressupostos do planejamento estratégico voltado ao desenvolvimento local é ter como ponto de partida a disponibilidade de recursos própria da localidade e extrair dela o máximo em termos de desenvolvimento da comunidade local. Somente uma municipalidade que seja capaz de alocar com racionalidade os recursos próprios disponíveis – financeiros, materiais e humanos – poderá fazer um adequado uso de recursos externos, que porventura sejam transferidos àquele município.
Em outras palavras, somente quando o orçamento municipal passar a refletir as mais prementes e estratégicas prioridades da comunidade municipal – eleitas, hierarquizadas e pactuadas em um processo verdadeiro de participação e não mais em decorrência dos “caprichos” e “teimosias” de determinado prefeito; quando a gestão e o acompanhamento das políticas e dos projetos forem assumidos pela própria comunidade beneficiária e quando os impostos de competência municipal estiverem sendo devidamente arrecadados, somente nessas condições a municipalidade poderá legitimamente reclamar por “mais recursos externos”, e a democracia terá efetivamente saído do campo das possibilidades e se tornado uma realidade.
3. Agricultura e desenvolvimento municipal
Desde a segunda metade dos anos cinquenta do século passado, o setor primário, especialmente a agricultura e a pecuária, vem passando por transformações cruciais. Umas, demandadas e forçadas pelos processos de industrialização e urbanização, que se acentuaram, e passaram a exigir do setor primário uma série de novas atribuições. Outras, resultantes da simples falta de uma política de desenvolvimento rural consistente com as novas características do setor e com as suas (agora) permanentes transformações.
A incorporação de progresso técnico à agricultura e à pecuária (com a consequente elevação da produtividade do trabalho), a concentração fundiária e o volumoso êxodo rural foram características do desenvolvimento do capitalismo no meio rural no Brasil, nas décadas de sessenta e setenta do Século XX.
Convém lembrar que se tratou de uma modalidade de modernização do campo, que priorizou o grande estabelecimento, com tecnologias e crédito “apropriados” aos grandes produtores – algo que a literatura especializada consagrou de “modernização conservadora”. A grande maioria dos produtores rurais de pequeno e médio portes, quando não ficou à margem desse processo, foi simplesmente incorporada pelos grandes produtores, sob o estímulo de uma modalidade de crédito rural que pressupunha e promovia a concentração fundiária.
Um dos resultados característicos desse modelo de modernização foi o esvaziamento econômico e demográfico de amplas frações do território, solapando as bases do desenvolvimento de um sem-número de municípios, cujas fontes de dinamismo estavam assentadas nas atividades rurais.
Outro resultado foi que o êxodo rural se mostrou dramático e excessivo, para além das necessidades requeridas pelos processos de industrialização e urbanização, gerando mão-de-obra redundante nos centros urbanos, produzindo um padrão de urbanização altamente problemático, cuja administração ainda continua sendo um dos grandes desafios para os administradores das grandes aglomerações urbanas dos dias de hoje.
Desde então, a despeito do grande debate nacional e do número e da qualidade das pesquisas econômicas, agronômicas e sociológicas voltadas ao segmento, os pequenos e médios produtores rurais continuaram, amplamente, à margem do processo de transformação do setor agropecuário. Também fora dos principais eixos nacionais de integração e desenvolvimento está a grande maioria dos municípios brasileiros, cujas bases produtivas, inclusive o desenvolvimento urbano, estão assentadas no meio rural e, em particular, na produção familiar.
Só em tempos recentes, sobretudo a partir de 1997, é que se incorporou ao acervo de políticas públicas a preocupação com o desenvolvimento rural e, sobretudo, com o desenvolvimento das famílias rurais. No entanto, por mais que tenhamos linhas de crédito rural apropriadas aos pequenos e médios produtores rurais e por mais extensiva que possa ser a abrangência do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), ainda estamos longe de ter configurada uma política de desenvolvimento do meio rural, em seu sentido amplo.
Uma política dessa natureza, além de uma adequada linha de financiamento à produção no meio rural (como efetivamente é o Pronaf), requer:
*Foco no ambiente rural em seu todo – o qual envolve, além da produção primária propriamente dita, a gestão integrada e sustentável dos recursos presentes no estabelecimento;
*A articulação com outros produtores do mesmo produto ou pertencentes ao mesmo espaço territorial (município, micro bacia etc.);
*Um nível mínimo de associativismo;
*A necessidade de se agregar valor à produção e;
*Uma política municipal voltada ao meio rural.
Nessa gestão integrada e sustentável, os municípios – sobretudo as prefeituras municipais – têm um papel crucial. Sem a ativa participação dos mesmos, não há política de desenvolvimento rural que seja possível. A maioria dos nossos dirigentes municipais ainda não compreende essas questões, pois:
*São poucos os municípios do Espírito Santo que dispõem de conselhos municipais de desenvolvimento rural, e estes, quando existem, não funcionam efetiva e livremente, com participação da sociedade, alheios à interferência e à tutela do prefeito;
*Poucos são os municípios que dispõem de secretarias municipais de Agricultura e estas, em sua maioria, não se encontram aparelhadas e dotadas de pessoal qualificado para oferecer ao produtor rural (e às suas organizações) planejamento e assistência técnica compatíveis com o desafio do desenvolvimento das comunidades rurais.
Em suma, no Espírito Santo, assim como em todo o país, apesar dos grandes avanços em matéria de administração municipal e de políticas municipais de desenvolvimento rural, não superamos ainda (e muito menos abandonamos) o obsoleto paradigma da “patrulha-mecanizada” – aquele paradigma de que para se fazer política agrícola basta cuidar das estradas vicinais.
4. O desenvolvimento do meio rural e o papel dos municípios
O que foi enunciado acima aponta para nós um imenso campo de oportunidades de cooperação entre o setor produtivo local e as esferas de governo, sobretudo o poder municipal, com vistas à implementação de políticas voltadas ao fomento do desenvolvimento rural.
Entre as mais destacadas oportunidades de atuação do poder municipal, encontram-se as seguintes:
*O fomento dos mercados local e regional de produtos – o consumo das escolas públicas e da rede hospitalar pode servir de base para a regularização de uma demanda qualificada;
* O fomento à organização de produtores, como forma de (a) permitir o acesso a mercados extra-regionais, inclusive para os produtos oriundos do processamento artesanal, contribuindo para a criação de “marcas associadas às regiões”; (b) reduzir os custos de transação quando do relacionamento desses produtores, antes dispersos, com as empresas ou cooperativas líderes das cadeias agroindustriais; (c) permitir o melhor acesso ao crédito, pela criação de cooperativas de crédito, pela prática de avais cruzados, pela disseminação das normas operacionais do Pronaf etc.
*A implementação de fundos de aval (como já começa a acontecer em alguns municípios), que sejam capazes de permitir ao produtor rural o acesso a financiamentos ajustados às necessidades dos estabelecimentos;
*A adaptação, na medida do possível, dos calendários escolares e dos currículos, especialmente do ensino médio, às especificidades da agricultura da região;
*A certificação de qualidade e origem dos produtos locais;
*A cooperação para a conservação dos recursos naturais, especialmente da cobertura vegetal, do solo e da água;
*A cooperação com as associações de produtores na montagem de canais permanentes e eficazes de atualização em matéria de conhecimentos agronômicos, de técnicas de gerência e, fundamentalmente, de requisitos técnicos e fitossanitários, de preços dos produtos e de dinâmica dos mercados;
*A manutenção das estradas e de outras infraestruturas;
*A associação com outros municípios em consórcios capazes de proporcionar escalas adequadas para o equacionamento e solução de entraves e gargalos em questões, tais como saúde, educação, meio ambiente e gestão de recursos hídricos, intermodalidade de transportes, estocagem de produtos agrícolas etc.
5. Conclusões
Procuramos deixar claro que, por mais bem estruturada que possa ser uma política de desenvolvimento rural, emanada da União ou dos estados, em determinado município, ele só será alcançado quando todos os esforços municipais estiverem convergindo para esse propósito.
Procuramos enfatizar também que isso só ocorrerá quando os municípios estiverem decididamente engajados no desenvolvimento de seus espaços rurais e quando, reflexo dessa decisão, o orçamento municipal deixar de refletir os caprichos e vaidades do prefeito e passar a espelhar fielmente as prioridades municipais, eleitas com base nas maiores potencialidades e nas maiores carências presentes no município.
Vale dizer, há muito que ser feito em prol do desenvolvimento das áreas rurais dos municípios e, o que é mais interessante, há muitas possibilidades e muitos instrumentos para tanto. Certamente as grandes políticas estruturantes do sistema produtivo devem emanar dos níveis superiores de governo, mas é ao nível do município, combinadas com arranjos políticos e institucionais locais, que essas políticas estruturantes surtirão seus efeitos.
O Pronaf-Crédito é um bom exemplo. Em muitos municípios do Espírito Santo foi e ainda é um sucesso; em outros, muitas vezes em municípios vizinhos, esse programa é um verdadeiro desconhecido da maioria dos produtores rurais.
Qual é a responsabilidade do prefeito, nesses casos?
(*) Economista. Comentarista de Economia da Pan News Vitória. Diretor Executivo da UVV Business School. Professor de Encomia da UFES.