por Vanderson Pedruzzi Gaburo
Uma das principais perversidades do nosso modelo de sociedade é sua capacidade de transformar e normalizar seus desajustes. Como parte do processo de alienação, somos chamados a não notar as divisões de classe, as mazelas sociais, a precarização das condições de vida e trabalho, as diversas manifestações de preconceito contra as minorias, as barreiras de acesso, a violência, as pessoas em situação de rua, enfim, todo um conjunto de condições cotidianas.
Direcionando a atenção para um caminho cada vez mais individualista, somos parte de um sistema cultural moldado para manter tudo como está, usando algumas estratégias nem sempre fáceis de descortinar. Podemos citar duas para exemplificar.
A primeira é o senso de fatalismo, ou seja, de que as coisas são assim mesmo historicamente e há pouco o que fazer. Portanto, por mais que mudemos tudo, sempre haverá os excluídos do sistema, como consequência inevitável. Isso ajuda a esconder o fato de que não apenas vivemos numa sociedade desigual. Mas, numa que produz desigualdade por escolha de modelo, por proposta. Como bem salienta o sociólogo Jessé Souza, parte da elite brasileira acredita na necessidade da manutenção das desigualdades para a prosperidade financeira do país.
O segundo ponto a observarmos é o processo de culpa. Nele, os sujeitos sem acesso não são as vítimas do sistema, apenas não se esforçaram o suficiente. Não quiseram estudar, não querem trabalhar, moram em qualquer lugar, entre outras. Um arranjo bem organizado que quase sempre é mascarado por histórias de sucesso de quem, apesar disso, venceu na vida. Ao explorar esses casos e construir heróis, no macro ou micro poder, dizemos claramente que é possível mover a pirâmide social sem modificar suas estruturas. Uma crueldade que cristaliza a ideia de que quem não consegue é porquê não se esforçou ou foi suficientemente capaz.
O entrelace dessas e de outras estratégias construí as percepções e vivências que vamos acumulando. Das mais profundas às mais simples, como quando paramos de observar ou não nos importamos mais com a cordinha na caneta que fica disponível em bancos ou outros espaços públicos, para garantir que ninguém a leve embora. Se não somos capazes de preservar a utilização coletiva da caneta, e se a necessidade do uso de uma cordinha não incomoda, fica evidente que o sistema está funcionando perfeitamente.
Descontruir esse modelo social e implantar novas bases é uma luta coletiva e parte da tomada de consciência, com uma visão crítica sobre a sociedade que vivemos. Essa é uma ação complexa, sobretudo quando vemos as pessoas reproduzindo conceitos e ações que ajudam a subjugá-la. Mas, necessárias e possível.
Vanderson Pedruzzi Gaburo é Sociólogo e Mestre em História Social das Relações Políticas e Presidente da Federação das Apaes do ES