A atual crise fiscal dos Estados é grave e se manifesta nas crescentes dificuldades de caixa para pagar a servidores, fornecedores e credores. Ela corre após 20 anos do plano de refinanciamento das dívidas estaduais com a União e 15 anos após a instalação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), o que significa retrocesso de duas décadas na gestão das finanças estaduais.
O refinanciamento de dívidas – Programas de Ajuste Fiscal (PAF) – e a LRF, em complementação ao tripé macroeconômico adotado no âmbito federal, compõem um conjunto de medidas que contribuíram para o reequilíbrio das contas públicas, a estabilidade monetária e a redução sustentada da taxa de juros real na primeira década dos anos 2000. O conjunto do setor público estadual saiu do déficit primário de -0,2% (2000) para um superávit de +1% do produto interno bruto (PIB) – média 2004-2008 –, com queda da dívida consolidada estadual de 20% para 14% do PIB.
A situação mudou depois de 2007, com a inflexão gradual da política econômica, até a adoção da nova matriz econômica, em 2012. Para os Estados, a consequência foi a volta ao déficit primário (-0,3% do PIB em 2014) e a expansão, ainda em curso, da dívida consolidada. Fica patente que os pilares macroeconômicos, que outrora foram o suporte para a conquista do equilíbrio da primeira década dos anos 2000, foram facilmente modificados a ponto de provocarem a grave crise atual.
Na mudança da política econômica, o afrouxamento fiscal foi uma escolha, com base em desonerações utilizadas em larga escala, contenção artificial dos preços regulados e imposição de gastos obrigatórios aos entes subnacionais. Com a queda da poupança corrente dos Estados e a imposição de programas federais de investimento – PAC e Copa do Mundo –, a União estimulou a tomada de operações de crédito. O reendividamento estadual, próximo de R$ 180 bilhões, sancionou assim a troca de fontes próprias pelas fontes onerosas para investimento, as quais abriram espaço para o aumento permanente das despesas obrigatórias dos Tesouros estaduais.
No estímulo ao reendividamento, uma resolução do Senado foi modificada para fixar o cálculo mais leniente dos encargos futuros das novas dívidas, o que permitiu a multiplicação dos avais concedidos pelo Ministério da Fazenda. Mesmo com o relaxamento das regras infralegais, entre 2013 e 2014, boa parte dos avais concedidos pela União aos Estados ocorreram segundo “excepcionalidade”, prevista na Portaria MF 306/2012. Os diversos programas editados – os PEF I e II, a revisão do PAF 2012/2013, o Proinveste e a retirada dos financiamentos da Copa e do PAC do cálculo dos limites legais – são provas da indução a mais endividamento, especialmente com bancos oficiais, mas também com organismos multilaterais.
A LRF e os PAFs, assim, não foram suficientes para assegurar a sustentabilidade das gestões fiscais estaduais. No “espírito” da sua formulação se encontra a presunção de que o governo federal é capaz de dar conta da tutela e do controle da solvência dos entes subnacionais. A realidade dos últimos seis anos, que culmina na atual crise, comprova quão equivocado foi esse enfoque.
Agora, diante da crise de grandes proporções, fica evidente a necessidade de uma maior concertação federativa e de avaliações ou auditorias independentes e mais próximas dos parâmetros de mercado.
Por isso, se a intenção é fortalecer e valorizar a LRF e as instituições fiscais, torna-se fundamental tirar do papel o dispositivo que prevê a criação do Conselho de Gestão Fiscal (CGF), capaz de criar uniformidade contábil, convergência de conceitos e de gestão. É necessário reconstruir os parâmetros para a verificação do equilíbrio intertemporal das contas públicas, e isso vale tanto para os Estados quanto para os demais entes públicos.
Uma gestão federativa compartilhada, além da uniformidade da apuração de resultados fiscais, poderá buscar o tratamento de fatos novos não previstos na LRF (uso das rendas do petróleo, por exemplo), a reversão do crescimento pró-cíclico dos gastos sociais e a contenção das pressões para ampliar sem sustentação os gastos obrigatórios.
O CGF pode ser reforçado pela criação de leis fiscais (LRFs) estaduais, no intuito de estabelecer limites mais adequados de endividamento, definição mais precisa da composição da receita corrente líquida (limitadora das despesas com pessoal), impedimento para aumentos futuros das despesas de caráter continuado, além do período de gestão, contabilização apartada e uso adequado das rendas petrolíferas, e garantia da estimativa realista de receitas orçamentárias. Os Estados têm bases econômicas e estruturas fiscais heterogêneas, com espaço para adoção local de metas diferenciadas para alcance do próprio equilíbrio fiscal intertemporal.
Ainda assim, a LRF estadual pode ser monitorada por instituição fiscal independente, conduzida por segmentos da sociedade civil organizada – movimento empresarial, movimentos pró-transparência pública, academia – e responsáveis por avaliações preventivas. A instituição fiscal independente estará focada em assegurar o equilíbrio de longo prazo, respeitando, ao mesmo tempo, a dinâmica própria dos ciclos políticos, mas lançando alertas sempre que os governos de plantão ofereçam riscos àquele equilíbrio intertemporal.
A pertinência da adoção de instituições fiscais federativas e de regras subnacionais reside, assim, no fortalecimento institucional voltado para promover a responsabilidade fiscal como base para o desenvolvimento sustentado. E reside na crença, apoiada na construção de uma cultura coletiva, de que a sociedade é de fato a proprietária e o ente legítimo para resguardar o valor social do equilíbrio fiscal de longo prazo.
Ana Paula Vescovi é secretária da Fazenda do Espírito Santo. Foi secretária adjunta de política econômica do Ministério da Fazenda.
*Artigo original publicado em O Estado de São Paulo.