Nós nunca vivemos tanto o progresso como atualmente. Do avanço nas viagens de avião, hoje discutimos sobre viagens de foguete – para o espaço!!! É tanta evolução que às vezes até assusta. Mas, ao contrário do que falei no início, isso não é atual. Na verdade, já foi discutido lá atrás pelo livro Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. E a conclusão não foi nada boa. Bem, vamos entender melhor essa obra-prima da literatura mundial, seu contexto, seu autor, o que ele realmente queria mostrar com esse livro e por que, mais de 80 anos depois de sua publicação, Admirável Mundo Novo segue como uma realidade chocante e mais atual do que nunca, ao lado de 1984 e Fahrenheit 451 (que também já falamos por aqui).
Análise completinha de Admirável Mundo Novo
Quem foi Aldous Huxley
Aldous Huxley foi um escritor inglês nascido no dia 26 de julho de 1894 que cresceu na companhia de uma elite intelectual. Ao longo da vida, atuou como jornalista, crítico de teatro e até escritor de roteiros para o cinema em Hollywood, além de viajar por vários lugares para se manter em contato com os intelectuais europeus. Após publicar em 1928 o livro “Point Counter Point”, onde já mostrou uma robusta solidez intelectual, em 1932 veio o livro que marcaria para sempre o seu nome no selecto rol da literatura mundial e que nos leva a esta análise.
Por volta de 1950, Huxley começou a usar os alucinógenos mescalina e LSD para expandir a consciência e descobrir novos horizontes do pensamento humano (hein?!) e em 1960 foi diagnosticado com um câncer de laringe. Faleceu em Los Angeles no dia 22 de novembro de 1963.
Sinopse de Admirável Mundo Novo
Vou ser sincera aqui: não sei se conseguirei resumir com precisão toda a complexidade e abrangência dessa obra, mas prometo que vou dar o meu melhor. Então, vamos lá:
A história se passa num futuro distante, por volta do ano 2500, ou 600 da Era Fordiana, uma referência clara a Henry Ford, o fundador dos carros Ford mesmo e precursor da fabricação em série e padronização do trabalho em serviços autônomos (um conceito que veremos ao longo de todo o livro). Bem, aqui não há espaço para a humanidade de ninguém, todo mundo é parte de um sistema “perfeito”, sem espaço para outra emoção que não seja a felicidade.
Até mesmo as pessoas são produzidas em série. Sim, produzidas, em laboratórios, num sistema de castas chamadas Alfa+, Alfa, Beta+, Beta, Gama, Delta ou Épsilon, de acordo com a função a ser executada e a necessidade social. Se é preciso mais cientistas, por exemplo, mais Alfas são produzidos. Se a demanda é por mais trabalhadores braçais, aí intensifica a produção de Épsilons. Elas são condicionadas a gostar ou desgostar do que é importante para o seu papel social, nos Centros de Condicionamento do Trabalho e através da hipnopedia, frases repetidas centenas e centenas de vezes enquanto dormem para serem absorvidas numa verdadeira lavagem cerebral. Assim, elas aceitam o destino que julgam imutável. Tudo é como é.
Não há espaço para a monogamia, as pessoas precisam se relacionar com várias outras, mas não por muito tempo, para não se apegarem afetivamente. O lema é “cada um pertence a todos”. Não há família, pai, mãe, irmãos, Deus, religião, nada. Não há qualquer senso de individualidade, ou consciência crítica sobre a realidade. Não há nada que torne os humanos, humanos.
Então o senhor acha que não existe um Deus?
— Ao contrário, penso que muito provavelmente existe.
— Então por que…? Mustafá Mond atalhou-o.
— Mas ele se manifesta de modo diferente a homens diferentes. Nos tempos pré-modernos, manifestava-se como o ser descrito nesses livros. Agora…
— Como se manifesta ele agora? — perguntou o Selvagem.
— Bem, ele se manifesta como uma ausência; como se absolutamente não existisse.
— A culpa é sua.
— Diga, antes, que a culpa é da civilização. Deus não é compatível com as máquinas, a medicina científica e a felicidade universal. É preciso escolher. Nossa civilização escolheu as máquinas, a medicina e a felicidade. Eis por que é preciso que eu guarde esses livros no cofre. Eles são indecentes. As pessoas ficariam escandalizadas se…
O Selvagem interrompeu-o
— Mas não é natural sentir que há um Deus? — O senhor poderia igualmente perguntar se é natural fechar as calças com zíper — retrucou o Administrador sarcasticamente.”
Dito isso, temos Bernard Marx, que pertence à elite genética, mas sofreu algum tipo de defeito durante a sua reprodução artificial e acabou fisicamente menor em relação aos outros da sua casta. Por isso, ele se sente excluído e de alguma forma injustiçado, o que o leva a questionar o sistema.
Durante uma “reserva primitiva” com a sua companheira do momento, Lenina Crowne, Bernard encontra Linda, uma mulher que nasceu na “civilização”, mas, ao fazer a mesma viagem com seu par da época (alguém muito importante na história, mas que não vou contar para não dar spoiler), acabou se perdendo na reserva e ficando para trás. Além desse fato horrível, há outro pior com Linda: ela está grávida, algo inaceitável no mundo moderno.
Bernard também conhece John, o filho de Linda, chamado de “Selvagem”, com quem desenvolve um tipo de amizade. Bernard, então, leva John e Linda de volta para Londres, onde a história se passa, por acreditar que os dois trariam o reconhecimento que ele não tinha na sociedade por ser diferente.
John e Linda, agora gorda, sem dente e absolutamente fora dos padrões perfeitos de beleza, causam um verdadeiro horror nas pessoas, e John, que aprendeu a ler com Linda e passou a vida lendo um livro de Shakespeare, também se assusta com o que as pessoas entendem por ser humano. Sua sensibilidade e seus valores naturalmente humanos causam muita confusão e desestabilizam o sistema. O problema é que não há lugar para desordem e a conversa entre Mustapha Mond, a mente poderosa por trás do Sistema Mundial, e John é um dos trechos mais intensos e reveladores de toda a literatura mundial. Sério, é de perder o fôlego.
Agora o contexto de Admirável Mundo Novo
Aqui não tem como: spoilers vão rolar. Prepare-se.
Admirável Mundo Novo é um manifesto humanista e uma crítica feroz ao progressismo, ao avanço científico e ao culto à ciência. Aqui, a ciência assumiu o lugar da humanidade, desde a concepção de pessoas ao destino traçado por elas. O que nos torna humanos? É o nosso poder de escolha, mas ele não existe no mundo Fordiano: tudo já foi escolhido, e em laboratório.
— E esse — interveio sentenciosamente o Diretor — é o segredo da felicidade e da virtude: amarmos o que somos obrigados a fazer. Tal é a finalidade de todo o condicionamento: fazer as pessoas amarem o destino social de que não podem escapar.
Aqui a sociedade está organizada em um um regime socialista, com todo o poder nas mãos do Estado, o que, obviamente, não dá certo. E Huxley nem fez questão de disfarçar essa crítica. Para começar, um dos protagonistas, que no início parece um herói, mas ao longo da história vemos que ele está longe disso, se chama Marx. No fim, ele só quer ser parte do sistema. E tira a letra A do nome Lenina para você ver se rapidinho não vem à memória outra figurinha carimbada do socialismo.
Além disso, outra parte intrinsecamente humana é deixada de lado por quem? Por ela mesma, a ciência. Estamos falando das emoções e da tal Soma. Não há nenhum tipo de incômodo emocional. Tristeza, solidão, medo, angústia, estresse, tudo é resolvido com alguns comprimidinhos de Soma, uma droga que deixa todo mundo feliz da vida. Ela é tão presente na história quanto o ar que as pessoas respiram. Simplesmente ninguém vive sem.
E sempre há o soma para acalmar a cólera, para nos reconciliar com os inimigos, para nos tornar pacientes e nos ajudar a suportar os dissabores. No passado, não era possível alcançar essas coisas senão com grande esforço e depois de anos de penoso treinamento moral. Hoje, tomam-se dois ou três comprimidos de meio grama e pronto. Todos podem ser virtuosos agora. Pode-se carregar consigo mesmo, num frasco, pelo menos a metade da própria moralidade. O Cristianismo sem lágrimas, eis o que é o soma.
O contraponto entre o científico e o humano em sua essência vem com John e, curiosamente, com Linda. Ele, criado entre os índios e em contato apenas com Shakespeare, aprende sobre monogamia, Deus, amor, fidelidade, famílias, privacidade, cultura, violência e outras coisas que já não existem no novo mundo.
Já Linda vive o conflito dos seus instintos humanos como mãe e a lavagem cerebral que viveu. De algum jeito, ela está conectada emocionalmente ao filho. A prova disso é quando desconta toda a sua frustração numa surra violenta nele, culpando-o pelo desastre da sua vida, mas depois o abraça e chora amargamente. Ela não entende, mas vive o instinto materno trazido pelas emoções que são suas. Ela o ensina a ler e explica sobre o seu mundo perfeito, o que faz com que John sonhe com ele e queira conhecê-lo, afinal, ele é civilizado demais para os índios.
Fazemos com que todos detestem a solidão, e organizamos a vida de tal forma que seja quase impossível conhecê-la. O Selvagem concordou inclinando a cabeça com tristeza. Em Malpaís, sofrera porque o haviam excluído das atividades comunitárias do pueblo; na Londres civilizada, sofria porque nunca podia fugir dessas atividades comunitárias, nunca podia estar sossegado e só.
Quando ele conhece, porém, tudo desmorona. Ele se choca com a padronização, com o modo como a mãe é tratada, pelo desrespeito com a morte, com a ausência das lágrimas. Não há felicidade, porque não há humanidade, porque não lá liberdade. A conversa entre Mond e John é tão profunda a respeito de tanta coisa que valeria um post só para ela. Como líder do Estado, Mond tem acesso a vários livros banidos socialmente, incluindo a Bíblia. O diálogo é pautado por trechos de obras de Shakespeare, mostrando como a literatura molda os pensamentos.
Aliás, a frase Admirável Mundo Novo (Brave New World) são palavras de Shakespeare no poema A Tempestade. Elas eram uma esperança para John, mas se revelaram seu tormento.
No fim, o que John pede é o direito de ser humano, em toda a sua intensidade, suas consequências. Porque ser humano é ser livre e lidar com as consequências dessa liberdade. O problema é que temos dado à ciência a nossa liberdade ao permitir que ela sinta por nós, ao permitir que a publicidade dite o que queremos, que a tecnologia nos proporcione outras sensações. E o tal Metaverso, ele não é uma realidade virtual? Por que ser humano de verdade se eu posso ser virtual?
O que fica como reflexão é o que John, o Selvagem, quer:
— Mas eu não quero conforto. Quero Deus, quero a poesia, quero o perigo autêntico, quero a liberdade, quero a bondade. Quero o pecado.
— Em suma — disse Mustafá Mond —, o senhor reclama o direito de ser infeliz.
— Pois bem, seja — retrucou o Selvagem em tom de desafio. — Eu reclamo o direito de ser infeliz.
— Sem falar no direito de ficar velho, feio e impotente; no direito de ter sífilis e câncer; no direito de não ter quase nada que comer; no direito de ter piolhos; no direito de viver com a apreensão constante do que poderá acontecer amanhã; no direito de contrair a febre tifoide; no direito de ser torturado por dores indizíveis de toda espécie.
Houve um longo silêncio.
— Eu os reclamo todos — disse finalmente o Selvagem.
Mustafá Mond deu de ombros.
— À vontade — respondeu.
Eu ainda vou voltar para mostrar como vivemos o Admirável Mundo Novo hoje em dia, como fertilização in vitro, anticoncepcionais, programação neurolinguística e até cinema 4D, porque esse texto já ficou grande demais. Mas Admirável mundo novo é um livro para ser lido e relido. Espero ter ajudado a compreender a grandeza e a assustadora realidade que esse livro nos mostra. Qualquer coisa, já sabe, pode deixar nos comentários aqui embaixo que eu sempre respondo!
Li este livro a 20 anos atrás, recomendei pra muita gente, estou relendo. Vejo que a 90 anos atrás, o escritor falou de criar o ser humano em laboratórios, condicionados a ser consumistas,
comprar tudo que aparece, destruir a natureza sem culpa alguma…..
Oi, Maria. Eu reli agora e foi uma experiência incrível! Ainda vou falar sobre quanta coisa de Admirável Mundo Novo vemos em nossa atualidade.
Obrigada pela visita!
Preciso encontrar esse livro que o li nos anos de1980 pela primeira vez. A princípio tratei-o como uma ficção comum de entretenimento mas, a realidade do agora nos leva a acreditar mais na teoria de Lamarck do de Darwim.
A diferença é que a mutação é controlada e não obra do acaso.
Eu reli este ano e foi uma experiência incrível, agora com outra mentalidade e outra realidade. Super recomendo!!
Li este livro também há muitos anos, assim como A revolução dos bichos e 1984 do Orwell. Ambos autores são muito atuais, cada qual à sua forma, Huxley mais “sutil” na forma de controle da liberdade e da vontade, Orwell mais violento. Huxley tinha uma formaçao mais voltada para a biologia e era parente de uma sucessão de proeminentes biólogos e naturalistas. O SOMA pode ser ministrado de outra forma, mídia, consumo, atividade profissional, caminhamos a passos largos para o quarto 101 e muito SOMA.
Li o maravilhoso livro há quarenta anos e ele me fez mais humanista mesmo já entendendo seu desfecho inevitável com a tecnologia transformando o homem em meros zumbis … o bebê de proveta que Huxley previu para quatrocentos veio com apenas trinta como o Prozac o genérico do soma … e decidi eu também quero ser infeliz.
Pensei nesse livro esses dias ,eu o li a primeira vez ainda criança ,por volta dos 11 anos.
Existem fatos hoje em dia ,que me remetem ao livro.
Como por exemplo o conceito de um alemão de nome Hasheem ,para criação de úteros artificiais.
Uau! Isso me assusta bastante .
Li esse livro quando tinha 23 anos portanto há 45. Havia depreendido na época já os primeiro.infucios das críticas encontradas naquelas páginas e na medida dos ano vejo que nos aproximamos cada vez mais de todo o seu contexto. Penso que as vezes o tema é revelador, apaixonante e aterrador. Enfigostaria de morrer bem velhinha para ver até onde chegaremos com essa discrepância entre filosofia, realidade e modernidade.