O polêmico projeto de lei 1904/24 que equipara o aborto ao homicídio e prevê pena de até 20 anos para a mulher e o médico que interromperem uma gestação acima de 22 semanas, mesmo em casos de estupro, cita, em sua justificativa, um caso capixaba.
Em agosto de 2020, uma menina de 10 anos de São Mateus engravidou após ser estuprada pelo tio, de 33 anos. Ela era vítima de abusos desde os 6 anos e a gravidez só foi descoberta após ela passar mal e ser levada para um hospital local, já com cerca de três meses de gravidez. O tio foi preso.
Após descoberto o crime e a gestação, a menina enfrentou uma verdadeira saga para ter direito ao aborto legal, garantido pelo artigo 128 do Código Penal e por uma decisão judicial dada por um magistrado do Estado.
Ela foi tirada de casa e encaminhada para um abrigo na cidade, sua família passou a ser assediada e pressionada por grupos religiosos e políticos – que afirmavam ter ligação com a então ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves – para não prosseguir com o aborto, os dados da menina foram vazados para ativistas pró-vida que chegaram a publicar o nome dela em redes sociais – indo contra o Estatuto da Criança e do Adolescente –, a menina precisou ir para outro estado para realizar o aborto e a família chegou a sofrer ameaças, precisando contar com o suporte do Estado – mudando de cidade e de nome – para seguir a vida após a interrupção da gravidez.
A vítima chegou a tentar fazer o aborto em Vitória, no Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes (Hucam), mas o procedimento lhe foi negado. O hospital justificou que o protocolo seguido se baseava numa norma técnica do Ministério da Saúde, de 2005, que limitava o abortamento a fetos de até 22 semanas e com peso de até 500 gramas. A menina chegou ao hospital com 22 semanas e 4 dias de gestação e com o feto pesando 537 gramas.
O Estado, então, providenciou a ida de menina para um hospital especializado no procedimento, localizado em Pernambuco. Como os dados da menina foram vazados, com a ativista (na época bolsonarista) Sara Winter publicando em redes sociais, a família da menina já foi recebida com protestos e gritos de “assassinos” no hospital. Mesmo assim, o procedimento foi realizado.
Agentes de saúde que acompanharam a garota durante todo o processo relataram que a menina não queria manter a gravidez. Na decisão judicial, há o relato de alguns profissionais afirmando que só de tocar no assunto, a menina “entra em profundo sofrimento, grita, chora e nega a todo instante, reafirma não querer, demonstrando inestimável sofrimento”.
O projeto
No PL 1904/24, que está em tramitação na Câmara Federal em regime de urgência e tem dois deputados federais do Estado que assinam como autores – Evair de Melo (PP) e Gilvan da Federal (PL) –, o caso capixaba é citado na justificativa, entre outros casos, como exemplo de episódios em que profissionais de saúde se recusaram a fazer o aborto em gestação com mais de 20 semanas.
“Os médicos do hospital local, seguindo as recomendações da norma técnica do Ministério da Saúde, devido ao estado avançado da gestação, não quiseram realizar o aborto. A menina foi, por conseguinte, levada na sexta-feira, dia 14 de agosto, para Vitória, capital do Estado, ao Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes, onde havia um serviço especializado em abortos para vítimas de violência sexual. Mas os próprios médicos do serviço também se recusaram a realizar o aborto, devido ao estado avançado da gestação, sugerindo que a menor permanecesse hospedada no Hospital Universitário até o momento do parto”, diz trecho do projeto.
No caso do Hucam, a então superintendente alegou, na época, que o aborto foi negado por motivos técnicos, que o hospital e nem outra unidade do Estado teriam condições de realizar o procedimento de forma segura. Foi a partir daí que a Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) transferiu a vítima para Pernambuco.
O projeto altera quatro artigos (124, 125, 126 e 128) no Código Penal que tratam sobre o tema, acrescentando que em casos de aborto “quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples previsto no art. 121 deste Código”. A pena para homicídio simples vai de 6 a 20 anos de prisão. A pena para casos de aborto é de 1 a 4 anos de prisão.
O projeto também acrescenta um parágrafo tirando a excludente de punibilidade em casos de estupro. Hoje, vítima e médico não são punidos pela realização do aborto se for em caso de estupro, mas se o projeto for aprovado, passarão a ser:
“Se a gravidez resulta de estupro e houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, não se aplicará a excludente de punibilidade prevista neste artigo”.
Só a título de comparação, a pena para crime de estupro, segundo o artigo 213 do Código Penal, é de 6 a 10 anos de prisão. Ou seja, a vítima de estupro caso aborte após 22 semanas de prisão corre o risco de ser presa e pegar uma pena mais alta que seu algoz, o estuprador, se o PL 1904/24 virar lei.
Leia o PL 1904/24 na íntegra aqui: PL-1904-2024
>> Quer receber nossas notícias 100% gratuitas? Participe da nossa comunidade no WhatsApp ou entre no nosso canal do Telegram!
LEIA TAMBÉM:
Político que expôs e tentou impedir aborto em menina estuprada no ES recebe homenagem na Ales