Por 11 votos, o polêmico projeto de lei 57/2023, que proíbe que pessoas em situação de rua durmam e façam qualquer outra atividade nos locais públicos da Capital, foi rejeitado durante sessão na Câmara de Vitória na manhã desta terça-feira (12).
O projeto foi derrubado após ser apresentando pedido de regime “urgência urgentíssima”, com a assinatura de cinco vereadores, para que fosse colocado em votação ainda na sessão de hoje – o projeto estava programado para ser votado na sessão de amanhã (13).
Votaram contra o projeto os vereadores:
- Aloísio Varejão (PSB)
- Anderson Goggi (PP)
- André Brandino (Podemos)
- André Moreira (Psol)
- Chico Hosken (Podemos)
- Dalto Neves (SD)
- Duda Brasil (PRD)
- Karla Coser (PT)
- Luiz Paulo Amorim (PV)
- Maurício Leite (PRD)
- Vinícius Simões (PSB)
Votaram a favor do projeto os vereadores:
- Davi Esmael (Republicanos)
- Luiz Emanuel (Republicanos)
O presidente Leandro Piquet (PP) não vota e o vereador Leonardo Monjardim (Novo) estava ausente. O projeto foi arquivado.
Durante os discursos, vereadores contrários ao projeto, como Karla Coser (PT) e André Moreira (Psol), disseram que Vitória tem 1.226 pessoas em situação de rua para apenas 205 vagas em abrigos – citaram que os dados são do Ministério Público.
O que dizia o projeto
O projeto tinha três artigos e era bem sucinto. No 1º, dizia que “é vedada a ocupação, por qualquer pessoa para fins de moradia e quaisquer atividades habituais, providas de assistência social, nos logradouros públicos situados no município de Vitória”.
O 1º parágrafo dizia: “Considera-se atividades habituais, todas aquelas congregadas ao cotidiano humano, tais como, culinária, higienização e necessidades fisiológicas, dentre outras que incorrem na constante usurpação dos bens públicos de uso comum do povo e na liberdade, tranquilidade e vida privada da população”.
O 2º parágrafo complementava: “Considera-se assistência social, qualquer mecanismo propício a ressocializar as pessoas, de forma que estas não se encontrem em posição de marginalidade e tampouco se sujeitem a praticar infortúnios aos(às) demais munícipes, a contemplar abrigos para moradia, tais quais munidos de condições de habitação, alimentação, higienização, dentre todos os recursos essenciais para a subsistência humana”.
O projeto também apresentava sanções. No artigo 2º dizia: “Sem obstar a aplicação das penalidades previstas nas Leis 8.696, de 29 de julho de 2014 e 6.080, de 29 de dezembro de 2003, quando couber, o infrator é obrigado, a indenizar ou recuperar os danos causados ao meio ambiente e aos bens de uso comum do povo, afetados por sua atividade”. E o artigo 3º afirmava que a lei entra em vigor após sua publicação.
Em resumo, o projeto proibia que pessoas em situação de rua durmam, cozinhem, tomem banho e façam suas necessidades nas calçadas, praças e outros locais públicos da Capital e obrigava a Prefeitura de Vitória a retirar essas pessoas das ruas, como explicou o autor do projeto à coluna:
“Cabe ao prefeito regulamentar a lei e treinar profissionais para que seja feito um acolhimento adequado. O acolhimento é maior do que uma abordagem. Não será cerceado o direito dessas pessoas de ir e vir, mas o que não pode é ocupar as calçadas com moradia. A Prefeitura tem vagas em abrigos”, disse Luiz Emanuel.
E complementou: “Ninguém pode interceptar o espaço público, que tem que ser do convívio de todos. Nós perdemos a condição de nos locomover nas praças em função da ocupação das calçadas. O artigo 187 do Código Civil e Código de Postura do município dizem isso”.
O vereador é de Jardim da Penha e tem seu reduto eleitoral no bairro – que é uma região de classe média e que se tornou um dos principais refúgios de pessoas em situação de rua. Segundo o vereador, são muitas as reclamações de moradores e comerciantes.
“As pessoas estão indignadas e daqui a pouco vão querer agir com as próprias mãos. Os comerciantes são furtados, precisam limpar as fezes na frente do seu comércio. Eles pagam tributos, têm direito de caminhar, de circular em paz e tranquilidade”, disse Luiz Emanuel.
Ele negou que o projeto fosse inconstitucional, já que havia entre os vereadores a discussão de que incorreria em vício de iniciativa, uma vez que cria despesas para a Prefeitura de Vitória.
“Eu fui autor da lei que tirava as carroças das ruas. O que eu quero é tirar essas pessoas da escravidão das ruas. É indigno e desumano deixar essas pessoas nas ruas, o poder público precisa agir. E também precisamos separar quem precisa de ajuda do Estado de quem se esconde entre as pessoas em situação de rua para traficar drogas e roubar”.
Polêmica com Igreja Católica e MPES
A polêmica sobre o projeto de lei 57/2023 ultrapassou as paredes da Câmara de Vitória. A Igreja Católica, por meio da Arquidiocese de Vitória, entrou na briga contra o projeto, acusando-o de ser contra os pobres e de promover exclusão social.
Na nota da Igreja, assinada no último sábado (09), o arcebispo Dom Dario Campos orientou a rejeição ao projeto. “Esse projeto representa uma afronta direta aos direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal. A proposta ignora o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento maior da República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso III, CF), ao tratar como infração a simples presença de pessoas em espaços públicos”.
E acrescentou: “Do ponto de vista cristão, repudiamos a iniciativa, pois ela vai contra o Evangelho de Jesus Cristo, que sempre se fez próximo dos marginalizados e oprimidos. Jesus nasceu pobre, caminhou entre os pobres, acolheu os desamparados e nos ensinou a prática do amor e da misericórdia. Como Igreja, não podemos aceitar que a exclusão e a estigmatização de nossos irmãos e irmãs em situação de rua sejam institucionalizadas”. (veja a nota completa aqui).
O tema também fez parte de sermões em missas de domingo, aumentando ainda mais a pressão sobre a Câmara de Vitória. Mas, além da Igreja Católica, o Ministério Público Estadual (MPES) também entrou em ação.
A Promotoria de Justiça Cível de Vitória questionou o presidente da Câmara, Leandro Piquet, sobre a tramitação da proposta.
Num ofício encaminhado ao presidente, solicitou informações sobre a proposta e questionou se estava sendo tratada “em consonância com as ações previstas na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 976, aprovada pelo Supremo Tribunal Federal em julho de 2023, e que trata da implementação da Política Nacional para a População em Situação de Rua pelos municípios brasileiros, reforçando a importância de se debater e criar estratégias para a inclusão desta população em todas as políticas públicas”.
Entre outras coisas, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 976 diz que cabe ao poder público se organizar para oferecer serviços adequados às pessoas que vivem em extrema vulnerabilidade social. Ela também proíbe o recolhimento forçado de bens e pertences, a remoção e o transporte compulsório de pessoas em situação de rua e o emprego de técnicas de arquitetura hostil contra essa população.
Base de Pazolini trabalhou para derrubar o projeto
O projeto de Luiz Emanuel não foi derrubado pela oposição, embora os votos do grupo tenham somado na decisão final. Foi a base aliada do prefeito Lorenzo Pazolini (Republicanos), da qual Luiz Emanuel faz parte, quem agilizou para que o projeto entrasse na sessão de hoje e fosse derrubado, evitando a pressão de movimentos sociais, marcada para amanhã.
O pedido do regime de urgência foi solicitado por cinco vereadores da base: Duda (líder do prefeito), Dalto, Goggi, Brandino e Aloísio.
Nos bastidores, a orientação para derrubar o projeto seria para evitar desgastes ao prefeito com a Igreja Católica, com o MPES e com os moradores e comerciantes principalmente de Jardim da Penha. Isso porque, se o projeto fosse aprovado na Câmara, seguiria para o crivo do prefeito, a quem caberia sancionar ou vetar.
Além do projeto de Luiz Emanuel, também foi arquivado um outro projeto que tratava sobre o tema – porém com outra abordagem –, do vereador André Moreira. A proposta de André, entre outras coisas, obrigaria a Prefeitura a implantar banheiros químicos para as pessoas em situação de rua. O projeto estava apensado ao de Luiz Emanuel.
Investimento aumentou, diz prefeitura
A Prefeitura foi questionada sobre a proposta e as ações para a população de rua. Respondeu, por meio de uma nota, que os investimentos aumentaram e confirmou que há, atualmente, 205 vagas em abrigos na Capital.
Leia a nota na íntegra:
“A Secretaria de Assistência Social (Semas) informa que houve um crescimento de 80% em investimentos na área de assistência social de 2019 para 2024, passando de R$ 54 milhões para R$ 98 milhões. Também houve aumento de 72% no número de atendimentos . De janeiro a junho de 2024, a Semas executou 91% dos atendimentos realizados em 2020 e 66% do total de atendimentos de 2023.
Informa, ainda, que a média mensal de pessoas em situação de rua abordadas pela equipe do Serviço de Abordagem Social (SEAS) é de 218 e 205 acolhidas nos serviços da Assistência Social.
Vitória conta com uma rede de serviços à pessoa em situação de rua na assistência social. Um deles é o Serviço Especializado em Abordagem Social (SEAS), que realiza o monitoramento contínuo das ruas, além de dois Centros de Referência para Pessoa em Situação de Rua (Centro Pop), com uma unidade no território Centro e outra no território Continental, que funcionam todos os dias, das 7 às 17 horas.
A rede é composta ainda por sete serviços de acolhimento: Abrigo para Pessoas em Situação de Rua, Abrigo Institucional para Adultos e Famílias (Abrigo 1) – inaugurado nesta gestão –, Abrigo II e Abrigo III, Hospedagem Noturna e Abrigo para Migrantes, além da Casa República.”