Conheça os perigos de trabalhar com o que ama em uma era tecnológica
Você já deve ter escutado a seguinte frase: “Faça o que ama, e não precisará trabalhar mais em nenhum dia da sua vida”.
É muito bom termos um sentimento de autorrealização com relação ao nosso trabalho e sentirmos que podemos fazer alguma diferença no mundo a partir dele. Mas qual é o perigo disso? Será que existe existem algum?
Antigamente, o trabalho era apenas o que faziamos pelo salário. Era um “mal necessário”. Já hoje em dia, nossa cultura é a de que o trabalho é a nossa missão, uma oportunidade para deixarmos nossa marca no mundo, manifestarmos o nosso propósito de vida. Aprendemos que, a partir de como levamos nossa vida profissional, podemos nos tornar quem quisermos. Assim, criamos a ideia de que o trabalho é uma ferramenta para atingirmos algo – a felicidade, o sucesso, a autorrealização.
Por um lado, isso pode ser maravilhoso. Mas é preciso ter muito cuidado, porque acabamos por basear nossa autoestima, autoconfiança e valor como pessoa nas nossas conquistas profissionais. E ainda avaliamos os outros por esses mesmos padrões.
Assim, a linha entre nosso trabalho e nossa vida pessoal vai se tornando cada vez mais tênue. Já se tornou comum dizer, principalmente após a pandemia, que não existe mais separação entre vida pessoal e vida profissional. Dizem que o que precisamos fazer é nos virar para equilibrar as duas. Mas será que tivemos tempo de nos preparar para gerenciar isso de maneira eficaz?
O crescimento no número de pessoas ansiosas, depressivas, e casos de burnout nos últimos anos já nos dá essa resposta.
Com o trabalho sendo parte da nossa missão, valor pessoal e autorrealização, vamos nos dedicando totalmente à ele, mesmo que em detrimento de nossa própria saúde. Se sobra trabalho para o fim do dia, nos certificamos de concluir em vez de aproveitar nosso tempo livre para relaxar, já que nosso valor pessoal é medido em produtividade.
Somado à isso, com a evolução da tecnologia, nosso trabalho passou a ser muito mais do que uma única função. Todas as profissões se tornaram mais complexas e exigentes nos últimos anos. Parece que, para atingir a tão sonhada autorrealização, todo mundo precisa desenvolver competências de gestão de projetos, saber vender, marcar presença nas redes sociais, gerenciar conflitos…
O que vai exigindo de nós cada vez mais habilidades socioemocionais a fim de gerenciar tudo isso, as quais a grande maioria das pessoas não teve oportunidade para desenvolver desde cedo para se preparar para tanta exigência.
Tantas mudanças e necessidades de adaptação ao longo dos anos acaba nos deixando desfonfortáveis, inseguros e estressados. E se falhamos em algo, ou se temos dificuldade, nos sentimos culpados e nos invalidamos, principalmente quando somos apaixonados pelo que fazemos, pois a quebra de expectativa em nós mesmos se torna ainda mais dolorosa.
O avanço da tecnologia não nos trouxe somente maior volume de trabalho: nos trouxe também a crença de que precisamos estar sempre conectados e disponíveis. Nos trouxe fontes de trabalho das quais parecemos não ter controle: ficamos o tempo todo ligados, em diferentes grupos de WhatsApp, com trabalho e vida pessoal misturados. Está cada vez mais difícil limitarmos a circulação de informação do trabalho apenas ao horário comercial.
A profissão vai absorvendo cada vez mais o nosso tempo livre e nos sobrecarregando com stress.
Não estou dizendo que é ruim trabalhar com o que amamos, ou que a tecnologia está atrapalhando a nossa saúde mental. O que busco é fazer um alerta de que, diante desse cenário, precisamos estar vigilantes com relação ao modo como estamos levando o trabalho e conscientes de que uma vida mais relaxada começa na nossa própria mente.
Precisamos aprender a identificar quando a autocobrança está nos colocando sob estado de stress e prejudicando nossa saúde. Precisamos reconhecer que o nosso valor não é, e nunca será, medido em produtividade.
Precisamos abandonar a ideia de que é preciso estar disponível a toda hora. Precisamos reconhecer, respeitar e nos posicionar quanto aos nossos limites. Cada uma dessas ações parte do nosso poder de decisão que podemos exercer a qualquer momento a fim de levar uma vida mais leve, onde a autorrealização é o meio, e não o fim.
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