Cadê meu bebê?

Filha busca pais biológicos no ES após enfermeira de hospital entregá-la "informalmente"

Última reportagem da série investigativa da TV Vitória/Record “Cadê meu bebê?“ mostra a história da mulher no Sul do país que descobriu ter sido adotada no Espírito Santo durante a ditadura militar

Diversas famílias lidam diariamente com a dor de não saber ao certo o que aconteceu com seus filhos ou irmãos. São mais de 50 anos de angústia.

As crianças deram entrada no Hospital Infantil de Vitória na segunda metade da década de 1960, durante o regime da ditadura militar. Dias depois, foram registradas como mortas. As famílias não viram o corpo ou ao menos receberam a certidão de óbito com a causa da morte.

As incertezas mantêm viva a esperança de um dia saber o que realmente aconteceu.

Nesta semana, o Balanço Geral ES exibiu a série de reportagens investigativas “Cadê meu bebê?“, que buscou tentar entender e esclarecer alguns pontos das histórias vividas pelas famílias.

As histórias contadas nas reportagens não se reduzem a teoria da conspiração ou algo improvável. As famílias acreditam que o que aconteceu com elas pode ter acontecido com muitas outras.

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A promotora de vendas Lyvia Maia, de 45 anos, vive em Curitiba, no Paraná. Ela se mudou para o sul do país ainda criança. Segundo ela, sempre conheceu sua origem. “Meu pai queria muito uma filha. Ele tinha três filhos homens, mas queria uma menina. Foi aí que decidiu me adotar.”

A chegada da menina aconteceu após um encontro casual em um dia chuvoso.

Minha mãe adotiva estava dirigindo. Chovia muito naquele dia e ela quase atropelou uma enfermeira, uma moça que estava com uma maleta levando alguns materiais para um laboratório do hospital. Ela ofereceu uma carona para a enfermeira, que aceitou. Elas trocaram telefone, minha mãe perguntou para essa enfermeira sobre a possibilidade de uma adoção, e assim começou.

Lyvia Maia, criança adotada no Espírito Santo durante a ditadura militar

Segundo o relato da mãe para a filha adotiva, cerca de uma semana depois daquele encontro, a enfermeira do hospital teria ligado para dizer que havia nascido uma menina e um menino. “A minha mãe foi correndo para a maternidade”, conta.

Depois de adulta, a curiosidade de Lyvia começou a incomodar. A promotora de vendas resolveu procurar pelos pais biológicos. Foi nesse momento que a sua história se cruzou com a das famílias da série de reportagens “Cadê meu bebê?“, exibida pela TV Vitória/Record ao longo desta semana.

Lyvia é uma criança oriunda de um hospital público de Vitória no período da ditadura militar. Ela foi adotada sem nenhum registro e nenhum documento.  

“Não tenho registro, não há nenhum documento dos meus pais biológicos. Até conversei com a equipe que está me ajudando no Espírito Santo sobre a possibilidade de eu conseguir o prontuário, mas até agora nada”, desabafou.

Ela conta que tentou de tudo para encontrar a verdade sobre a própria história. “Eu já fui atrás da maternidade, já entrei na Justiça. Tenho muita vontade de conhecer e saber quem são (os pais biológicos).”

Lyvia Maia busca conhecer sua história. (Foto: TV Vitória/Record)

A vida de Lyvia é um exemplo real do que era possível na época da ditadura militar: uma enfermeira que consegue uma criança para uma desconhecida sem nenhuma transparência, formalidade ou documento.

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Para o historiador e referência em estudos sobre a ditadura militar, Pedro Ernesto Fagundes, os relatos das famílias capixabas e de Lyvia são possíveis de terem ocorrido.

Segundo Pedro, que também é membro da Comissão da Verdade — um órgão que investiga violações de direitos humanos no período entre a ditadura de Getúlio Vargas, em 1945, e a redemocratização após o golpe militar de Estado, em 1988 —, a escuridão nos órgãos e nos registros estatais eram a regra naquela época.

A ditadura militar teve como característica o silêncio, o sigilo, o apagamento de evidências. Então, provavelmente, no setor público de modo geral, houve uma política sistemática de destruição de documentos para impor uma versão silenciosa desse período da história do Brasil. A ditadura não deixou evidências.

Pedro Ernesto Fagundes, historiador

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Questionado se acredita nas hipóteses levantadas pelas famílias que tiveram os bebês registrados como mortos após dar entrada no hospital infantil da Capital capixaba, Pedro diz não ter dúvidas sobre a possibilidade.

“Historicamente, em outros períodos autoritários e em outros países, isso era comum. Na Argentina, por exemplo, era muito recorrente os relatos de famílias de presos políticos em que pais foram mortos e os filhos raptados e entregues para a adoção. No Brasil, infelizmente, desaparecer com documentos e fraudá-los era algo corriqueiro na ditadura”, explicou.

Famílias alimentam a esperança

As famílias que buscam seus parentes perdidos mantêm viva a esperança em descobrir o paradeiro. Quase 50 anos depois, elas permanecem incansáveis na busca por respostas, mesmo diante de tantos obstáculos.

Maria da Glória relembra o sofrimento da perda do filho. (Foto: Reprodução/ TV Vitória)

“Tenho a esperança de encontrar meu filho, um homem feito, pai, com famílias e eu poder chegar para ele falar que nunca o abandonei”, contou Maria da Glória, que busca o filho Wanderli Marchiori. O bebê de Linhares foi dado como morto em julho de 1967.

Rita Fabres ainda tem esperança de encontrar o irmão. (Foto: Reprodução/ TV Vitória)

“Imagina se a gente encontrar. Imagina ele saber que tem um monte de irmãos e a gente saber que ele está vivo”, disse Rita Fabres, irmã de José Roque Fabres. A criança de Marilândia foi dada como morta em 1966.

Alair Hollunder conta a história da irmã dada como morta na ditadura. (Foto: Reprodução/ TV Vitória)

“Se alguém que sabe o que aconteceu, peço que não leve isso para o túmulo. Fala o que sabe, para quem sabe poder consertar algo e dar um final para essa história. Minha mãe já está com 80 anos, são 50 anos de um coração que sangra com essa dor. É uma dor que não cessa”, suplica Alair Hollunder, irmã de Angélica Hollunder, registrada como morta também em 1966.

A promotora de vendas Lyvia Maia, que vive no Sul do país e está em busca dos pais biológicos, fez teste de DNA para saber se é a bebê perdida da família Hollunder. O resultado deu negativo. Ela segue a sua procura pelos pais biológicos.