Foto: TV Vitória
Foto: TV Vitória

Cadê meu bebê?

Investigação de supostas mortes dos bebês na ditadura não andou até hoje

Terceira reportagem da série "Cadê meu bebê?" busca entender os fatores que dificultaram a investigação dos relatos das famílias

O Brasil da década de 1960 vivia o período mais obscuro da história moderna do país. Crise econômica, cenário internacional pós-guerra e convulsões sociais resultaram no golpe de estado de 1964.

Os serviços públicos viviam uma crise em diversas áreas, desde a segurança pública à saúde. Os hospitais tinham a administração desorganizada e muitos fecharam as portas.

Em abril de 1964, os militares assumiram o governo do país e passaram a controlar as instituições de poder. O povo deixou de ser ouvido e os questionamentos ao Estado foram limitados.

Foi nesse cenário político e social da segunda metade da década de 1960 que famílias do interior do Espírito Santo perderam os seus filhos. As crianças foram dadas como mortas sem explicação e enterradas após serem internadas no Hospital Infantil de Vitória.

Os fatos narrados pelas famílias podem parecer inimagináveis hoje em dia, mas na época, segundo especialistas e dezenas de pessoas ouvidas na série de reportagens investigativas da TV Vitória/Record, eram plenamente possíveis. 

LEIA TAMBÉM: Incoerências sobre as mortes de crianças durante a ditadura desafiam a versão oficial

A investigação dos relatos das famílias

Durante três anos, jornalistas da Rede Vitória buscaram conhecer os relatos e tentar entender o que aconteceu com as crianças.

As supostas mortes relatadas por parentes à reportagem aconteceram na década de 1960, mas o primeiro boletim de ocorrência na Delegacia de Pessoas Desaparecidas só foi registrado em 2003 pela família de Angélica Hollunder. Até hoje, mais de 20 anos depois, as apurações sequer resultaram na abertura de um inquérito policial.

“Não posso dizer hoje que houve uma falha. Podemos dizer que, naquele tempo, as pessoas tiveram o seu procedimento. Oitivas foram feitas. Naquela época, tinham dificuldades”, explicou o investigador da Polícia Civil Adriel Ludolfo Moreira.

Investigador Adriel Ludolfo Moreira fala sobre as dificuldades da investigação. (Foto: TV Vitória/Record)

A reportagem perguntou às forças policiais se é comum casos antigos não ter uma conclusão.

Não vou dizer que é normal, mas, por conta do espaço temporal, buscar certas informações é mais difícil. Quando alguém fala que foi adotada e a família não tem o endereço de quem doou, por exemplo, se a gente não sabe quem foi, como vamos atrás?

Adriel Ludolfo Moreira, investigador da Polícia Civil

Médico que assinou atestados de óbito não foi ouvido pela polícia

A polícia nunca ouviu o médico legista que assinou os atestados de óbito de Angélica e de Wanderli Marchiori, bebê de Linhares dado com o morto em julho de 1967.

O jornalismo da Rede Vitória conseguiu localizar em poucas horas o homem que pode ser a peça-chave para o mistério das mortes dos bebês.

Morador da Serra, com uma pacata vida de aposentado, Carlos de Faria conversou com a reportagem. Aos 84 anos, ele falou sobre os serviços prestados ao Instituto Médico Legal.

“O trabalho com o defunto deve corresponder a menos de 10% de todo o trabalho de um médico legista. Como essa parte impressiona as pessoas, elas sempre dão mais ênfase a essa parte de necropsia”, pontuou.

Com exclusividade, médico conversa com a reportagem. (Foto: TV Vitória/Record)

O médico explicou à reportagem como eram os procedimentos realizados durante a necropsia de um corpo na época em que ocorreram as mortes dos bebês.

Dois médicos legistas teriam que assinar o laudo. Se os dois tinham que assinar, supostamente, os dois tinham que estar presentes no exame. Só que isso era totalmente impraticável em qualquer lugar do Brasil. O que a gente fazia, não só aqui no Espírito Santo, mas em qualquer lugar, era um médico que fazia o exame e assinava, e o outro assinava só referendando.

Carlos de Faria, médico legista aposentado

Questionado sobre o alto número de mortes de bebês registrados naquela época, Carlos de Faria responde: “Esses dados, eu não procurava. Não era do meu interesse essas estatísticas. Não me lembro de ter examinado tantas crianças. Já examinei algumas crianças, a grande parte era por desnutrição”.

Na mesma época, além do IML, o médico também trabalhou no Hospital Infantil da Capital capixaba. “Eu também trabalhava no hospital infantil. Vi muita criança desnutrida. Crianças que viam principalmente do interior”, disse.

Quando perguntado pela reportagem sobre a hipótese levantada pelas famílias dos bebês registrados como mortos, de que crianças seriam, na realidade, levadas com vida por outras pessoas, o médico reagiu com surpresa.

Que história maluca. Essa é a primeira vez que alguém me fala a respeito disso. Eu nunca soube. Pode ter acontecido, mas não posso confirmar. Sei de crianças que eram largadas pelos pais ou responsáveis, e nunca iam buscar. O hospital tinha que ir atrás, às vezes não encontrava e voltava com a criança para o hospital.

Carlos Faria, médico legista aposentado

Declarante de óbito de fato trabalhava no hospital?

Milton Gomes de Amorim nunca foi funcionário do hospital infantil, de acordo com o registros oficiais do governo do Estado. O homem que declarou centenas de óbitos no auge da ditadura militar chegou a ser intimado, mas nunca foi ouvido pela polícia.

Em 2003, época em que a polícia começou a investigar o caso, a esposa dele prestou depoimento. Na ocasião, ela contou que Milton trabalhou na unidade e que morava em um cômodo nos fundos.

Segundo ela, Milton era motorista de ambulância e ajudante de serviços gerais. Sobre ser declarante de óbito de crianças mortas que não conhecia, a mulher disse que o companheiro recebia ordens do médico-chefe e da enfermeira-chefe.

A mulher afirmou que faziam desta forma para que as crianças não fossem enterradas como indigentes, pois ele recebia a informação de que elas não tinham família.

Milton Gomes de Amorim nunca foi ouvido pela Polícia Civil do Espírito Santo, embora estivesse vivo na época das investigações.

Quando intimado, ele alegou que estava passando mal e nunca mais foi procurado pela polícia.

Foto: Reprodução/ TV Vitória

O que diz a gestão do hospital?

A equipe da TV Vitória/Record também buscou prontuários e informações no Hospital Infantil da Capital. A gestão atual disse que recebeu com surpresa e perplexidade os relatos das suspeitas das famílias.

Recebemos com bastante surpresa a informação. Ela chegou para nós por meio da assessoria de comunicação. Ficamos, assim como todos, perplexos com a situação. Nas nossas buscas e levantamentos com ex-diretores, que ainda fazem parte do quadro da Secretaria de Saúde, não conseguimos encontrar relatos ou informações de que alguém tivesse conhecimento dos fatos.

Clio Zanella Venturim, atual diretor-geral do hospital

Sobre o declarante de óbito ter trabalhado no hospital, o atual diretor-geral disse que não há registros ou relatos de funcionários da época sobre Milton. “Todas as pessoas que conversamos, funcionários mais antigos, ninguém lembra ou faz menção desse funcionário.

Clio Zanella Venturim atua na gestão do hospital desde 2023. (Foto: TV Vitória/Record)

Restos mortais ainda existem?

No Cemitério de Maruípe, local em que os bebês das famílias ouvidas pela reportagem foram supostamente enterrados, a equipe da TV Vitória/Record foi informada por funcionários que todos os corpos enterrados há muitos anos são desenterrados e têm os ossos recolhidos.

As ossadas das décadas de 1960 e 1970, de acordo com os funcionários, foram lançadas em um fosso sem nenhum tipo de identificação. 

Fossos no Cemitério de Maruípe guardam ossadas antigas. (Foto: TV Vitória/Record)

Por nota, a Prefeitura de Vitória disse que as mortes de indigentes são conduzidas pela Polícia Civil. 

O Ministério Público do Espírito Santo disse que recebeu os casos em 2022 pela Secretaria de Direitos Humanos e que as informações foram encaminhadas para a Polícia Civil.

Foto: TV Vitória/Record