Foto: Reprodução/ TV Vitória
Foto: Reprodução/ TV Vitória

Cadê meu bebê?

Incoerências sobre as mortes de crianças durante a ditadura desafiam a versão oficial

Segundo episódio da série investigativa da TV Vitória aponta a fragilidade dos documentos oficiais e traz dados que impressionam

Mais de 50 anos após os relatos das mortes de bebês capixabas em um hospital de Vitória, as famílias ainda buscam respostas. Junto ao sofrimento, elas carregam a esperança de conseguir descobrir o que aconteceu para que as crianças fossem registradas como mortas dias após serem internadas.

Durante três anos, a equipe de jornalismo da TV Vitória/Record ouviu relatos, realizou varreduras em arquivos públicos, fez buscas por certidões de óbito e visitou cemitérios.

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Abaixo, na segunda reportagem da série “Cadê meu bebê?“, você entenderá os pontos em comum entre os casos denunciados pelas famílias e o motivo que fazem com que desconfiem dos registros das mortes dos bebês, que teriam ocorrido sem explicação.

O que bebês tinham em comum?

As três famílias ouvidas pela reportagem são do interior do Espírito Santo e de origem humilde. Os bebês dados como mortos também tinham características físicas semelhantes. Eram de pele branca, olhos claros e loiros.

Segundo as famílias, eles eram levados para o hospital com sintomas leves, mas, mesmo assim, eram internados. Durante o período na unidade, as crianças não podiam ter acompanhantes.

“Era uma gracinha. Branquinho, com olho clarinho. Era lindo. Todos nós da família somos brancos, loirinhos, com a cabeça bem clarinha”, relata Rita Fabres, irmã de uma das crianças dada como morta após dar entrada na unidade para passar por uma cirurgia.

José Roque Fabres nasceu em Marilândia. Ele foi internado aos dois anos, em 1964, para fazer uma cirurgia e nunca mais foi visto pela família. (Foto: Reprodução/ TV Vitória)

Poucos dias após dar entrada na unidade, os pais das crianças eram informados sobre a morte dos filhos. Nos casos retratados, as famílias alegam que nunca viram os corpos, não receberam atestado de óbito e nem tiveram informações sobre os enterros.

Número de mortes de bebês é expressivo e chama a atenção

Durante meses, a produção da TV Vitória/Record analisou os arquivos públicos da Prefeitura de Vitória. Dezenas de livros civis com registros de óbitos da década de 1960 foram examinados. O número de morte de bebês com poucos dias ou meses de vida impressiona.

Em um único dia, por exemplo, em um mesmo cemitério da Capital capixaba, 13 bebês foram enterrados. Por mês, o número chega a 90 e, em um ano, a 783.

Bebês foram enterrados como indigentes

Ao receberem a notícia da morte dos filhos, os pais e familiares alegam a falta de informações básicas. De acordo com os relatos, não houve emissão de laudos com a causa da morte ou certidão de óbito.

Outro fato que chama a atenção nos casos é que, nos documentos oficiais, os bebês constam como enterrados como indigentes em valas comuns, mesmo com famílias. Os pais alegam que não puderam sequer ver os túmulos.

A investigação no arquivo mostrou novos números intrigantes. Somente em 31 de maio de 1965, 15 bebês foram enterrados como indigentes em Vitória. Naquele ano, foram 508 bebês enterrados.

“Não tem como enterrar uma criança como indigente. Eu acho que não tem como você enterrar uma criança com três dias de falecida sem a ordem de pai e mãe, e dizer que foi enterrada como indigente”, desabafa Maria da Glória Marchiori, mãe de um bebê de Linhares registrado como morto em julho de 1967.

Declarante de óbito é suspeito? 

O nome Milton Gomes de Amorim é um mistério e pode ser a peça-chave para o desfecho das histórias. Ele foi o declarante de óbito da bebê Angélica Hollunder e de outras centenas de crianças enterradas no Cemitério de Maruípe durante a década de 1960.

As investigações apontam que Milton seria o motorista do Hospital Infantil de Vitória naquela época. Ele morava de favor em um quarto nos fundos da instituição, de acordo com documentos da Polícia Civil.

Segundo o levantamento realizado pelo jornalismo da TV Vitória/Record, Milton declarou cerca de 30 mortes de bebês por mês em 1966. Ele chegou a declarar 279 mortes em um ano.

“Esse Milton foi declarante em 279 mortes só naquele ano. Eu pude ver no arquivo morto que, tinham crianças que faleceram 13h e às 16h já estavam enterradas”, relatou Alair Hollunder, irmã de Angélica.

Quem é o médico que declarou as mortes?

Diante do sofrimento de perder os bebês, algumas famílias entraram na Justiça e, após uma incansável batalha por respostas, conseguiram uma ordem judicial cerca de 20 anos depois das mortes para obter os atestados de óbitos.

Carlos de Faria assinou certidão de óbito de bebês. (Foto: Arquivo Público)

Mais uma semelhança entre os casos relatados gerou surpresa: o médico que assinou os documentos era o mesmo.

De acordo com uma das famílias, Carlos de Faria teria assinado um dos atestados com a data da morte incorreta.

No óbito, fala que a Angélica morreu em 15 de setembro de 1966. No dia 16, registraram o óbito. Conversei com o meu pai e perguntei que horas ele teria visto a minha irmã viva no sábado, ele falou que foi cerca de 10h. Olhamos no calendário e 15 de setembro de 1966 foi uma quinta-feira. Percebi que tinha algo errado, porque se fosse assim, ele já teria visto ela morta. Não existe a possibilidade dela ter morrido nesse dia, porque meu pai a viu viva e bem no sábado.

Alair Hollunder, irmã de Angélica.
Alair Hollunder conta a história da irmã dada como morta na ditadura. (Foto: Reprodução/ TV Vitória)

A família nunca teve uma explicação sobre a data errada na certidão de óbito de Angélica.

Falta de respostas da polícia

Somente mais de 30 anos após os acontecimentos, a polícia entrou no caso. Informações apuradas pela reportagem evidenciam que ações externas atrapalharam os trabalhos dos investigadores da Delegacia de Pessoas Desaparecidas da Polícia Civil na época dos registros.

Dificuldades como o desaparecimento de certidões de óbito, falta de empenho e interesse de delegados em investigar e o fato das histórias serem antigas são alguns deles.

A gente conseguiu ouvir uma pessoa envolvida, que trabalhava no hospital. Identificamos quem era o médico e, com algumas informações de colaboradores, vamos atrás de identificar os óbitos referentes àquele ano, que chamou muito a atenção. Precisamos avançar com os cartórios, ouvir outras pessoas.

Adriel Ludolfo Moreira, investigador da Polícia Civil.

O tempo é um fator que, segundo o investigador, dificulta ainda mais o andamento da investigação. “Precisamos identificar as pessoas, saber se continuam vivas, identificar os endereços. São casos muito antigos, é muito mais complicado”, explicou.

Na década de 2000, depois que casos foram registrados na Polícia Civil, funcionários do Arquivo Público Municipal de Vitória receberam uma ordem para que certidões de óbito fossem destruídas. O ocorrido foi confirmado por funcionários do local.

Somados, os fatores colaboram para que, até hoje, não haja um inquérito policial instaurado para apurar as denúncias relatadas pelas famílias, que há mais de 50 anos aguardam respostas.