Entenda qual é o papel do orientador na arte

Foto de Fernando Augusto
Fernando Augusto

O artista mineiro Amílcar de Castro, que lecionou muitos anos na UFMG  e na Escola Guignard, em Belo Horizonte, disse-me em uma das várias entrevistas que realizei, que não ensinava arte, o que ele fazia era observar o trabalho do aluno e indicar possibilidades pelas quais poderia desenvolver seu caminho.

Orientar e ensinar são metodologias diferentes. A primeira trabalha com a premissa de que o aluno já desenvolve uma pesquisa e o que  requer é um olhar para melhor avançar; a segunda, pressupõe um estudo mais dirigido onde o professor passa exercícios diversos com o objetivo de constituir, junto a este aluno ou aluna, todo um arcabouço técnico-téorico da  matéria.

Em minhas notas de aula e de atelier, volta e meia encontro alguns escritos de aulas e/ou orientações que julgo interessantes para quem transita por este mundo fascinante que é o aprender e o ensinar. Este pequeno artigo trata-se de uma dessas experiências.

Uma estudante, em um dos encontros para orientação de arte comigo, chegou  com vários trabalhos debaixo do braço e um sorriso. Perguntei-lhe: “O que você trouxe hoje?” E ela respondeu, em tom de brincadeira, que trazia ela mesma.

Em seguida,  mostrou um certo número de desenhos  de uma série que tem a denominação geral  “Paisagem Sonora”, mas que dependendo do viés tem outros nomes; alguns desenhos feito com costura e  fotografia sobre um tecido fino e o projeto de um livro infanto-juvenil que ela escreveu e pretende ilustrar.

Achei interessante ela dizer que trazia ela mesma, a disponibilidade de estar presente, de colocar-se à disposição. À disposição de quê? À disposição do projeto, do fazer,  das demandas da arte que, uma vez acionadas, passa a exigir. Lembrei-me da frase: “você se ajoelha diante do seu trabalho?”, extraída de um texto do Elias Canetti, que discuti aqui nos meus dois artigos anteriores. Dizer que trazia a si mesma, significava devotar-se ao trabalho?

LEIA TAMBÉM: Você também se ajoelha diante do seu trabalho? Parte 2

Algumas reflexões dessa orientação

Paisagem sonora – desenho do chão. Trata-se de dois exercícios fundidos em um só: o “paisagem sonora” é o exercício de desenhar de olhos fechados os ruídos e demais sonoridades do entorno, utilizando somente os elementos:  pontos, linha e plano sem o apelo da figuração, é o exercício de  desenhar um detalhe do chão que estiver pisando, em qualquer lugar onde se encontrar, a lápis ou caneta, e depois descrever no verso do papel,  como foi o processo, as observações do momento, as lembranças que vierem à cabeça, seguindo o fluxo mental. Ela apresentou alguns desenhos do quintal da casa dela, e outros de suas caminhadas pela praia.

Na praia, ela ficava parada em um determinado lugar, os pés na areia, deixando a água vir e ir,  levando e trazendo os grãos de areia que rolavam em seus pés, formando estrias curvilíneas no chão. Desenhando com atenção, ela transformava esses acontecimentos em pontos e linhas que, iam surgindo fluídas na folha branca.

No emaranhado das linhas, características do lápis ou da caneta, ela  buscava transpor com este material conceitual mínimo (ponto e linha), a diversidade de sensações que aquela proposição lhe trazia: estar de pé na areia, ficar imóvel, sentir o movimento das águas nos pés, ver, escutar, deixar existir os pensamentos, lembranças que vinham à mente e ter tempo…

O suporte. Ele dizia que não sabia porque desenhava sempre em uma pequena folha de papel medindo 21x21cm. Mas na continuidade do discurso, entendeu e disse que este era um tamanho mais à mão, mais fácil de carregar e de desenhar em pé.

E acrescentou que, ao se colocar de pé na areia, ela sentia que ocupava um espaço, mais ou menos de um metro quadrado, e que essa medida (1 m2) é de onde ela parte para tirar medidas do corpo de uma pessoa para costurar uma roupa. Achei essa justificativa muito plausível, o suficiente para ela  abandonar a proporção  áurea (21x32cm), dos papeis oferecidos nas papelarias e construir um conceito de quadrado (21x21cm.) Uma medida “mais à mão” para quem caminha e desenha em pé.

O quadrado que deixa, portanto, de ser conceitual e apresenta na vida, na mão, no pé, no corpo, na ideia: Com o quadrado ela pensa a casa, pensa o quadro, pensa o imensurável: o corpo. E aí podemos dizer: pensar o imensurável, não é essa a tarefa da arte?

Considerações. Ela já vinha fazendo esses desenhos há alguns meses, sua gaveta já guardava quase uma centena desses desenhos. Ela gosta deste processo e percebe que ele é prenhe de possibilidades, que se conecta a outras práticas e que se expande.

E agora, ela pergunta, como continuar? Comento: esses desenhos existem e se desdobram, continuam acontecer em papel e passaram a acontecer em costura. São desenhos de uma qualidade estética admirável. Penso então que  é tempo desses desenhos aparecerem, serem mostrados.

Os meios (os espaços) estão aí na cidade, abertos ou fechados, mas que precisam ser conquistados,  pensados, escolhidos construídos ou inventados. Não é só postar no instagram ou mostrar numa galeria, ou tentar um edital, são todas essas coisas e um pouco mais, porque mostrar, expor também faz parte do ensino e aprendizado.

Foto de Fernando Augusto

Fernando Augusto

Artista plástico, pintor, desenhista e fotógrafo. Professor do Departamento de Artes da UFES. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP - Sorbonne).