Parte I: o que é e o que faz um curador de arte?

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Cláudia França

Tem sido cada vez mais corrente o uso da palavra curadoria em diversos campos, no seu sentido mais genérico, que é o ato de realizar uma seleção. Entre diversos espécimes de um mesmo gênero ou conjunto, “curar” é separar um grupo com determinadas características que possam definir um percurso, ideia ou conjunto de ações. Uma lista de compras em um supermercado, nesse sentido, seria uma curadoria. Na grande oferta de mercadorias daquele recinto, realizamos um recorte do que precisamos para a nossa subsistência, tendo como pressuposto, a lista.

Umberto Eco, em A vertigem das listas, designa dois modos de ordenação das coisas: mapear e listar. Elaborar listas seria uma estratégia usada quando há uma indefinição da totalidade dos objetos ou mesmo na indefinição do que caracteriza alguma coisa. Lista, elenco ou catálogo seriam estratégias expositivas ou modalidades representativas da sugestão de dar um limite ao infinito. Listar pode ser inventariar, revelando um patrimônio; pode associar-se ao arquivo, quando este é uma lei que organiza uma coleção; listar, ainda, pode ser uma operação linguística de recodificação de um dado verbal, movimentando-o no ir e vir dos conceitos, operações, necessidades e contextos.

Trazendo o listar para o percurso de criação, o verbo se torna um ato mental em constante reconfiguração, mesmo que ainda não tenha se externalizado em um breve registro ou esboço do que seria uma forma ou um conjunto de operações físicas com a matéria, mesmo a matéria do espaço físico. Enquanto registros iniciais, o caderno de notas pode ser o lugar das listas como esboços vários, anotações de materiais, escalas desejadas, ocasiões para a elaboração ou exposição daquele trabalho em exame. O caderno, no entanto, é esse lugar de encontro da primeira aparição de uma ideia tanto quanto do seu insuspeitado, quando inadvertidamente entremeamos nele um elemento externo como flor seca, papel de bala, nota fiscal ou outra nota avulsa. Estes elementos podem se tornar “madeleines”, ou seja, estímulos à memória de um fato ou situação externa, mas que tem a potência de friccionar a lista de formas e estudos em processo. Se o caderno se coloca como lista de futuras ações, o portfólio pode ser pensado em outra direção. Organizar nossos trabalhos já realizados é uma listagem das ações feitas; organizar um portfólio pode ser pensado como arquivo precedido de uma listagem.

Iniciadas/iniciados em nossa trajetória artística, o portfólio foi quase que praticamente uma coleção, em que imperava o dado quantitativo, uma simples soma de trabalhos realizados, relativamente bem sucedidos. Mas após uma trajetória artística mais consistente, o portfólio poderia ser elaborado como arquivo: um conjunto organizado a partir de uma nomologia, de um critério organizador. Selecionamos registros e documentos a partir de determinados critérios como categorias artísticas, fases, gêneros, materialidades.

Voltemos ao termo curadoria. Ele implica as considerações postas acima, mas pode mesmo ser simplesmente o efeito de um ato prosaico, cotidiano de escolher: separar algo entre os demais. O estranho tem sido o uso desmesurado do termo no campo da vida comum, deslocamento de algo específico do campo das artes para outro lugar. Sempre tenho em mente a ação profícua de Pietro Maria Bardi como curador do MASP, viajando, visitando acervos particulares, elencando, doando, adquirindo e conservando obras fundamentais da história da arte ocidental para compor o acervo daquele museu. Trata-se da figura ímpar que mescla o guardião de um acervo, promotor de políticas de aquisição de obras, organizador e intérprete de obras e sinais em mostras, as quais aproximam o fechado do museu ao aberto da visita pública. Hoje temos outras possibilidades de curadorias, tantas quantas são as diversas maneiras de manifestação em arte contemporânea, onde operam o diverso, o obtuso, o fora do eixo e outras situações de fronteira em que se encontram as imagens.

Este estranhamento na transposição do termo curadoria, vindo do campo artístico/estético para uma acepção e uso mais genéricos e comuns – isso parece-me um assunto complexo, que envolveria discussões sobre a cultura de massas e a indústria cultural, por exemplo. Não é o objetivo deste texto. Por ora, é importante pensar também como o campo da arte moderna e contemporânea apropriou-se de termos da “vida” para nomear vertentes tridimensionais importantes, como objeto, instalação e performance. Performance comumente indica desempenho; instalação pode se referir a procedimentos da hidráulica e da elétrica em um recinto; objeto é tudo aquilo que está fora do sujeito. Ao chamar tais termos para si, o campo artístico revela a complexidade das ações artísticas e das ações cotidianas, a aproximação destes campos, o que antes não havia. O mister da arte em termos tradicionais era, de certo modo, inatingível por nós, meros espectadores; a admiração e contemplação eram as interações possíveis com uma obra de arte.

Objeto, performance e instalação eram e são signos da permeabilidade/comunicabilidade entre o tempo e espaço da obra e o tempo e o espaço do mundo (Alberto Tassinari). Ou seja, signos da não separação entre mundos. A existência e/ou a construção de um “grande mundo” ou infinito, nos dizeres de Umberto Eco, parece-me revelar, por outro lado, a dificuldade que temos em lidar com o incomensurável e o infinito. Sendo assim, resta-nos construir listas do “mundo, vasto mundo” que está diante e dentro de nós. Escolher, listar, curar. Para além do volteio entre Tassinari e Eco, há uma espécie de caminho de mão dupla no fluxo dos termos específicos para os genéricos: curadoria (e mesmo o termo “estética”) por um lado; instalação, por outro. Não é uma discussão simples, mas é preciso considerar o trânsito de termos na reflexão sobre a relação arte-mundo da vida contemporânea.

 

continua na próxima semana…

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Cláudia França

Cláudia França é artista visual, natural de Belo Horizonte, formada pela Escola de Belas Artes da UFMG, habilitada em Desenho e em Escultura. É mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, doutora em Artes pela UNICAMP e pós-doutora em Psicologia pela UFMG. Atualmente está no Programa de Pós-Graduação em Artes da UFES, em que se dedica, no mestrado e no doutorado, ao entendimento das dinâmicas do processo de criação.