Reflexões sobre criação, autoprodução e autoria

Foto de Isaac Antônio Camargo
Isaac Antônio Camargo

A imagem que ilustra este artigo se refere a uma obra que recebeu um prêmio na Feira Estadual do Colorado, realizada em Pueblo (EEUU), um evento semelhante as feiras agrícolas que acontecem aqui no país.

A do Colorado é realizada desde 1901 dedicada a celebrar e promover a agricultura, a indústria e a cultura do estado. Conta com atrações variadas como brinquedos, jogos, apresentações, competições, comida, exposição de máquinas, veículos, produtos agrícolas, animais, artesanato e …. Arte.

Não se trata, portanto, de um evento dedicado exclusivamente à Arte Visual, tampouco dependente de curadoria ou julgamento especializado destinado a validar obras, faz parte de um conjunto de atividades de entretenimento. Chamou a atenção o fato de uma imagem, produzida a partir de um programa de Inteligência Artificial, receber um prêmio gerando burburinho e indignação.

Tomando a situação como ponto de partida, pode-se refletir a respeito de, pelo menos, três aspectos: criação, autoprodução e autoria, aspectos que dialogam com as questões da Arte na contemporaneidade.

Processos de criação, sejam eles quais forem, dependem de olhares autorreflexivos capazes de identificar características, pontos positivos e negativos que devem ser analisados e avaliados na sua execução. Esta posição entende que os percursos de criação ou criativos dependem de ações e revisões contínuas para que atinjam um grau de satisfação compatível com as expectativas que se têm deles.

Quando se intui ou propõe algo, nem sempre o que se espera se mostra por completo ou minimamente resolvido há, no máximo, uma ideia aproximada de algum resultado provável. Contudo para que algo seja realizado há várias etapas e instâncias a resolver e as que surgirão, logo, é justamente o processo que acabará orientando o percurso levando-o ou não ao sucesso.

Nos últimos anos a adoção da ideia de autonomia vem se mostrando como um recurso para realização de projetos que, de outra maneira, não aconteceriam. Neste caso, podem ser desenvolvidos como atividades individuais ditas autorais. Esta é a postura, assumida como motivação e motor para o desenvolvimento de projetos que caracterizam a ideia de Autoprodução.

Há vantagens e desvantagens numa proposta que adote a autoprodução como estratégia única. A vantagem é manter a autoria e individualidade, já que todos os passos, etapas, pesquisas e informações dependem exclusivamente de quem realiza, logo, autoaprendizagem e autodomínio são essenciais e intransferíveis.

Em contrapartida, a desvantagem se refere exatamente a mesma coisa: como o processo não prevê a participação de outrem, o produto final só será aferido, apreciado e avaliado quando concluído e apresentado, portanto, há riscos de não atender às expectativas que o instigaram ou de não fazer sentido no contexto social.

Este é o maior risco e uma ameaça capaz de instaurar instabilidade, desânimo e levar à desistência. Pelo que se percebe, processos deste tipo tendem a comportar alta taxa de insucesso, mas em contrapartida podem reforçar atitudes proativas estimulando o autodesafio.

Este tipo de atitude, parece ser menos recorrente hoje em dia, dadas as facilidades do acesso em rede ao conhecimento produzido, registrado e consolidado, facilitando a apropriação e limitando a investigação. Os sistemas socioeconômicos operam em escala global e em massa, com grandes grupos comportamentais educados homogeneamente e treinados para consumir e não para refletir.

Neste caso, o trabalho solitário, individual e proativo é menos valorizado e pouco estimulado. A história está repleta de exemplos revelando que muitos avanços conceituais, técnicos e tecnológicos foram instaurados e desenvolvidos a partir de atitudes individuais proativas e não convencionais e coletivas.

Autoria, autoprodução, autoestímulo, autodesafio são palavras usadas para significar atitudes proativas que determinaram a realização de vários projetos ao longo do tempo. Assumir esta condição e adotar esta postura, embora reforce a autonomia e identidade, se mostra como uma condição solitária na medida em que requer curiosidade e envolvimento ativo em investigações, leituras e alta dose de autodidatismo.

Nos últimos anos uma vertente que vem surgindo, especialmente no campo das tecnologias digitais, é a chamada Cultura Maker. Este ramo é um desdobramento e aprimoramento do que começou informalmente com apelos ao DIY – Do it Yourself – Faça Você Mesmo, baseado num conceito simples dedicado ao desenvolvimento de atividades de criação, manutenção, reparação, transformação ou modificação de algo por iniciativa própria.

Atualmente a presença das redes sociais como uma fonte de informação ampla e irrestrita também vem assumindo a função de orientação de formação autônoma. É possível obter informações a respeito de tudo, pode-se encontrar tutoriais que auxiliam a execução de várias tarefas e produtos, há aplicativos programados para atender a uma infinidade de interesses e finalidades ampliando a possibilidade de pessoas realizarem tarefas, elaborarem projetos e produtos independente de preparo ou conhecimento prévio.

Atualmente, este conceito vem sendo apropriado por ambientes de formação, pesquisa e ensino informais e formais valorizando a práxis produtiva como motivação ou processo de produção. Assim surgem programas revestidos de caráter pedagógico/metodológicos estimulando a elaboração e execução de projetos com base na apropriação de conhecimentos disponíveis em meios tradicionais ou tecnológicos.

Neste contexto, tais ações, programas digitais e processos de ensino/aprendizagem podem ocorrer em ambientes coletivos e abertos ou individuais e restritos, mas residentes em plataformas digitais.

O potencial do ensino a distância, amparado em tecnologias computacionais, abriu novos horizontes de formação e experiências. Este potencial vem sendo utilizado, em boa parte, para justificar a ideia de livre iniciativa e auto empreendedorismo reforçando as tendências difundidas como modelo na economia global.

Idiossincrasia e Autoria

A idiossincrasia é um traço de personalidade que distingue os indivíduos uns dos outros. Algumas pessoas podem ser introvertidas outras extrovertidas, sociáveis ou ensimesmadas. Diferentes pessoas reagem de modo diverso a estímulos semelhantes, podem tanto interagir quanto reagir por aproximação ou afastamento.

Numa sociedade a diversidade de personalidade, comportamentos e interesses é importante no que diz respeito às diferenças entre indivíduos, à diversidade de pensamentos e ações.

Pessoas criativas podem optar por áreas em que seja possível manifestar este interesse como na arte, espetáculos, produção cultural, publicidade, arquitetura, design entre outras, ao passo que pessoas mais racionais podem optar por áreas como ciências naturais, pesquisa aplicada e desenvolvimento tecnológico etc. Não há regras, mas tendências.

Algumas pessoas preferem atuar em ambientes colaborativos, outras preferem atuar independentemente. Algumas pessoas seguem fluxos, padrões e expectativas sociais, outras buscam identidade pessoal.

É importante perceber as diferenças entre indivíduos tanto para conhece-los quanto para compreendê-los, isto é importante, especialmente no contexto do ensino para facilitar o processo de formação de cada um.

O conceito de Autoria se refere à capacidade de criar ou produzir algo. Em geral este termo é dedicado a indivíduos cujas habilidades cognitivas e/ou psicomotoras lhes possibilita a realização de obras próprias, sejam elas artísticas, científicas, utilitárias, processos, programas ou projetos de qualquer natureza.

Para efeito legal a autoria é um direito e propriedade tanto intelectual quanto patrimonial sobre algo produzido por um ou mais indivíduos ou empresas. O exercício da autoria individual é um direito, uma opção e motivo de respeito.

Atualmente as plataformas digitais vêm colocando em xeque as questões tanto de autoria quanto de propriedade intelectual e/ou material. A facilitação do comércio, por exemplo, por meio de Marketplaces, serviços de Streaming, e das redes sociais e aplicativos que criam relações diretas entre usuários e serviços onde as questões de autoria se tornam subliminares e indistintas vêm se tornando uma espécie de clic e use generalizado.

Aqui entram as chamadas Inteligências Artificiais, que operam mecanismos baseados em algoritmos programados para se apropriarem de dados onde critérios de respeito a direitos de propriedade intelectual ou material são obliterados, inclusive, possibilitando a invasão de privacidade. Neste sentido, a autoria deixa de ser algo individualizado e particular e se torna algo apropriável, simulável, coletivizado e hegemônico.

A falta de sistemas legislativos nacionais ou internacionais que entendam, atendam e regrem as novas tecnologias de captação e distribuição de dados cria uma área nebulosa no campo do direito e da ética criando dúvidas sobre o que é legal ou ilegal passando pelo discurso da liberdade ampla, geral e irrestrita amparada na concepção de quem tem poder, tudo quer e tudo pode.

Neste contexto, questões como criação, autoprodução e autoria podem se tornar meras utopias…

Pense nisto.

Foto de Isaac Antônio Camargo

Isaac Antônio Camargo

Professor, artista e pesquisador, graduado na Licenciatura em Desenho e Plástica, Mestrado em Educação, Doutorado em Comunicação e Semiótica. Atua no ensino no campo da Arte desde 1973, atualmente como professor associado nos cursos de Artes Visuais da UFMS. Desenvolve várias atividades de produção artística participando de mostras e como curador na produção de eventos. Realiza pesquisas sobre e em Arte Visual. Mantém o site www.artevisualensino.com.br destinado ao apoio de atividades didático/pedagógicas e difusão em Arte Visual.