Curto-circuito: as relações entre teoria, prática e poética nas artes visuais
Creio, que quem adota a arte no seu percurso de vida, independente para qual finalidade a destina, uma de suas responsabilidades é construir diálogos com espectadores. Contudo, nem sempre, estes diálogos são imediatos, mas mediatos, ou seja, dependem da pontuação ou indicadores que permitam a interação entre obra e expectantes.
Esta é uma das funções do ensino no campo das artes e, também, funções da crítica, da curadoria, das mediações e dos projetos educativos que apoiam as instituições de artes.
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Ao longo do tempo, meu percurso profissional acabou sendo definido pela condição de Professor/Artista/Pesquisador, postura aceita de bom grado mesmo que não se configure prioritariamente como artista ou em participar ativamente do circuito artístico, tampouco ser reconhecido pelo Sistema de Arte.
O que aprendi, ao lidar com o contexto do ensino no campo da arte visual, é que há elementos imprescindíveis tanto para seu conhecimento quanto para seu domínio. E, voltando no tempo, quando a filosofia era apenas a busca pelo conhecimento, não se pode esquivar, por exemplo, de Aristóteles quando intuiu as três grandes vertentes do conhecimento: a Theoria, a Praxis e a Poiesis.
Nesta concepção, admite que o Ato resulta naquilo que o Produz e é Produzido. Para ele, tudo o que é arte ou ciência são potências ativas e racionais em vias de realização/atualização. Ativas porque têm capacidade de realizar mudanças e se tornar ou gerar outras coisas e racionais, por serem potências, ou seja, tudo poder.
Neste sentido, a prática (praktikê), poiética (poiêtikê) e a teórica (theôrêtikê) podem ser explicadas:
- as práticas são ações;
- as poéticas são seus fins, o que almeja ou objetiva;
- a teoria compreende a reflexão cognitiva e racional geradora de conhecimento.
Tais considerações admitem que as relações entre teoria, prática e criação podem ser sincretizadas num caminho que unam fazer, apreciar, analisar, realizar, produzir ou gerar algo, independente da ordem em que venham a ser abordados.
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No campo do ensino sobre e em arte visual, pode-se recorrer a elas considerando que a separação ou as delimitações fronteiriças, tradicionalmente estabelecidas entre tais vertentes, podem ser minimizadas e/ou depuradas.
Para exemplificar esta postura, no contexto artístico/didático em arte visual, recorro a uma obra de Cildo Meireles: “Projeto Coca-Cola”, de 1970, parte da série “Inserções em Circuitos Ideológicos”.
Na série, Cildo se apropria de suportes circulantes como papel moeda e garrafas de refrigerante e os converte em “porta vozes” de ideias que não podiam circular livremente por conta do regime militar.
A inserção de inscrições e questionamentos em cédulas e nas garrafas de vidro retornáveis, tinham grande possibilidade de circulação, portanto, era possível promover o engajamento e ativismo político por meio destes “circuitos alternativos”.
No entanto, passados 50 anos, as coisas mudaram. No que diz respeito às garrafas, elas deixaram de ser retornáveis e se tornaram descartáveis sendo produzidas aos milhões em polyethylene terephthalate, um polímero termoplástico batizado de PET.
Ao olhar para o contexto industrial e de consumo contemporâneo, o Projeto Coca-Cola seria inviável, contudo, ao analisar seu potencial conceitual é possível atualizá-lo considerando dois aspectos.
Um deles diz respeito à substituição do vidro por plástico, isto beneficiou a indústria, mas vem causando danos irreparáveis ao meio ambiente inundando-o com garrafas plásticas que permanecerão poluindo-o por centenas de anos, isto é desolador.
Outro é olhar com otimismo para os “princípios ativos” da proposição de Cildo e tentar inocular novos questionamentos no mesmo segmento industrial que a motivou.
A empresa que serviu ao projeto original vem sendo apontada como a maior poluidora ambiental. O relatório da Break Free From Plastic informou que ela é a maior geradora de lixo plástico no planeta.
Se, por um lado, a apropriação das embalagens retornáveis para circular informações já não é viável, por outro, é possível mudar o foco da questão usando os mesmos recursos.
Sob esta ótica, propus um diálogo em contraponto com a versão de Cildo: “Curto-Circuito”, uma proposição que, neste momento, considera o alerta sobre a depredação ambiental, tão importante e essencial quanto o que motivou a anterior.