Redação 900+: veja análise de ex-avaliadora do Enem sobre redação de aluna
A primeira etapa do ENEM-2024 ocorreu no último domingo (3), com a prova de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias (incluindo as disciplinas de Língua Portuguesa, Literatura, e Inglês/Espanhol) e de Ciências Humanas (envolvendo História, Geografia, Sociologia e Filosofia).
O estudante teve 5 horas e 30 min. para resolver as 90 questões objetivas em torno dessas duas grandes áreas, incluindo a redação. Neste ano, o tema escolhido pela equipe do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), órgão vinculado ao Ministério da Educação (MEC) e responsável pelo exame, foi “Desafios para a valorização da herança africana no Brasil”.
Sem dúvida, um bom e importante tema, embora uma temática próxima já tivesse sido proposta em 2016, na segunda aplicação da prova, para as pessoas privadas de liberdade (candidatos hospitalizados/acamados e presidiários).
Inclusive, fico pensando que muitos alunos podem ter se enveredado pela questão racial e ter tangenciado o tema. O racismo é, certamente, um dos desafios a ser abordado pelo candidato, mas não é o tema central da proposta.
O histórico da prova de redação
É bom lembrar que o ENEM foi criado em 1998 para avaliar o desempenho dos estudantes concluintes do ensino médio. Não se tratava, portanto, de uma prova que pudesse conferir a entrada dos alunos no ensino superior. Era apenas um instrumento avaliativo para mensurar o aprendizado dos jovens durante o ensino básico.
No início, a dita “correção” das redações era realizada presencialmente, em três turnos de 4 horas cada – manhã, tarde e noite – para a avaliação de 100 textos por período. A banca, na verdade, não corrigia e não corrige as redações, apenas as avalia, atribuindo-lhes uma pontuação, em uma escala de 4 (dois pontos abaixo da média, dois acima).
Participei das edições de 2001, 2002 e 2017, no último, após uma formação de três meses promovido pela Vunesp, naquela época responsável pela avaliação. As competências avaliativas, nesse tempo todo, não se alteraram muito, embora o INEP tenha incluído a necessidade de um repertório sociocultural na Competência 2 e do respeito aos direitos humanos.
No passado, o aluno que infringisse este quesito tinha sua redação desclassificada. Hoje, ele recebe nota 0 apenas na proposta de intervenção.
Dos critérios de avaliação do texto
A redação do ENEM é avaliada em 5 competências:
Competência 1: domínio básico da língua portuguesa (vocabulário, pontuação, ortografia, acentuação, crase, regência, concordância, aspectos da sintaxe da oração).
Competência 2: cumprimento da proposta em relação ao tema e ao tipo textual dissertativo-argumentativo, com repertório sociocultural, ou seja, alguma referência à bagagem cultural do candidato (uma obra literária, o verso de um poema ou canção, um filme etc.) e/ou uma referência à sociologia, antropologia, filosofia etc.
Competência 3: seleção e organização dos argumentos de forma coerente entre si, como, também, coerente com o tema e com a realidade, e de forma progressiva. Textos que não avançam a cada parágrafo perdem na argumentação pela falta de consistência.
Competência 4: coesão textual, isto é, articulação adequada entre as palavras, as orações, os períodos e os parágrafos. A repetição de expressões, por exemplo, deve ser evitada. Esta competência se relaciona à primeira – o domínio da língua – e, entre elas, não deve haver, naturalmente, uma discrepância.
Competência 5: apresentação de uma proposta de intervenção, coerente com o problema apresentado na introdução, respeitosa aos direitos humanos e composta de 5 aspectos: agente (a quem cabe a responsabilidade da ação), ação (o que deve ser realizado para contribuir para a solução do problema), meio (por meio de que canais ou providências), fim (o objetivo da ação) e um detalhamento de um desses pontos (uma informação, citação, um dado, exemplo etc. do repertório do aluno que complete um desses elementos).
Cada competência vale 200 pontos de um total de 1000. A redação corresponde a 25% do exame como um todo. Um grande peso, portanto.
A proposta de 2024 e algumas reflexões a respeito
A proposta deste ano foi considerada de nível fácil. Havia muito a dizer sobre a herança dos afrodescendentes na realidade brasileira: no vocabulário, na música, arte, dança, moda, culinária, nas festas populares. A cultura brasileira tem, em suas veias, a africana, assim como a indígena e a europeia.
Parodiando Guimarães Rosa, somos, enfim, este “mutirão de todos”, e está aí a nossa diversidade e riqueza cultural. Porém, nada aconteceu e acontece em plena harmonia. Infelizmente, a maneira como fomos colonizados deixou marcas profundas nos povos originários: negros traficados e indígenas sobretudo.
O poema O Navio Negreiro, de Castro Alves, por exemplo, relata, triste e belamente, esse processo, no qual famílias foram separadas e histórias, apagadas. Muitos nem chegaram ao destino imposto diante das condições insalubres e indignas nas embarcações.
Tudo com o objetivo de, a ferro e fogo, “construir” um país. E os séculos transcorridos – de lá até aqui – não foram suficientes para a superação dessa desigualdade e submissão, cruel e injusta. Aí está a importância da proposta: alertar os jovens em busca de uma mudança de olhar e de justiça.
A redação de uma candidata
Ainda na noite do domingo da prova de Linguagens, Ciência Humanas e Redação, chegou o rascunho da redação de uma aluna, Khadyja Tércio Oliveira, que já havia conquistado 980 na redação do Enem 2022, mas resolveu mudar de curso e tentar novamente a aprovação em outra área.
Sem dúvida, um excelente texto, salvo um aspecto, que, talvez, lhe tire a nota 1000: justamente o fato de ela não ter detalhado a herança que nós, brasileiros, carregamos dos povos africanos. E aí não se tratava “apenas” de cultura, mas, ainda, do nosso modo de ser: da nossa resistência diante das adversidades, dos nossos corpos e movimentos, do nosso modo de ver e de sentir. No mais, a redação da aluna atende, quase em sua integridade, os requisitos do exame.
Confira, por fim, a bela reflexão de Khadyja, com os meus pequenos ajustes linguísticos em destaque!
No século XIX, a assinatura da Lei Áurea representou uma mudança jurídica para a sociedade brasileira ao ilegalizar a escravidão como forma de trabalho e de sistema socioeconômico. Apesar do avanço, no século XXI, as populações de origem africana ainda sofrem com a marginalização social e, por isso, enfrentam dilemas relacionados à manutenção de suas tradições e cultura. Por esse motivo, é necessário entender os desafios para a valorização da herança africana no Brasil: a discriminação social e o descaso governamental.
Em primeiro lugar, segundo o sociólogo brasileiro Caio Prado Júnior, o Brasil só pode ser entendido a partir das estruturas vindas da colonização. Ou seja, a exploração e a violência social sofrida pelos afrodescendentes, durante séculos, são responsáveis pela reificação desses indivíduos, que passam a não serem vistos dignos de direitos e de manifestação cultural. Por consequência, o preconceito racial é exteriorizado nas instituições sociais primárias, como a família e a escola, acarretando o apagamento da memória africana e impedindo sua manifestação nos espaços públicos e coletivos. Assim, a intolerância e a indiferença diante da cultura afro-brasileira são acentuadas.
Ademais, a negligência na demarcação de quilombos também prejudica a preservação da herança patrimonial africana. Nesse sentido, é possível citar Karl Marx. Para o pensador, no sistema capitalista, o lucro é priorizado em detrimento de valores humanos. Essa ideia demonstra (porque) por que há uma tentativa de fragilizar entidades e organismos do Estado, responsáveis por garantir o uso social da terra, enquanto meio de perpetuação do patrimônio cultural tradicional, à medida que a expansão da fronteira agrícola e do agronegócio são intensificadas. Nesse cenário, uma guerra pela terra é instaurada. Logo, além de colocar em risco a vida das pessoas, também afeta a manutenção dos vínculos de transmissão do legado e de resistência dos quilombos.
Infere-se, portanto, que medidas são necessárias para viabilizar a herança de origem africana no Brasil. Para isso, o Poder Executivo deve, por meio da criação de uma agenda nacional, incentivar políticas educacionais e de segurança, como o estabelecimento de uma disciplina de cultura africana nas escolas e o aprimoramento do poder de atuação das entidades do Estado na proteção dos quilombolas, com intuito de garantir a valorização do legado afro-brasileiro ao povo e à memória coletiva nacional.
Concluindo, em relação às notas prováveis, Khadyja teria 200 pontos nas Competências 1 (apenas dois desvios); 2 (cumprimento da proposta); 4 (coesão textual) e 5 (proposta de intervenção com os 5 elementos esperados). Apenas na competência 3 (coerência e capacidade argumentativa), talvez, ela não alcance a nota máxima, exatamente por não ter esmiuçado as ricas heranças dos povos africanos para os brasileiros.
Nota final, do meu ponto de vista: 980.